O problema é antigo, está-nos no sangue, parece-me. Dizem-nos que o herdámos do tempo do "botas" , que nos obrigou ao servilismo. Não acredito. A coisa vem mais de trás, do princípio da nossa história enquanto nação, com Egas Moniz a confundir honra com servilismo ( numa "interpretação" muito minha, e livre, da história...) quando foi pedir perdão e oferecer a sua vida e da sua família em resgate a Afonso VII por D. Afonso Henriques se ter recusado a prestar vassalagem ao primo, conforme lhe prometera Egas Moniz, se este levantasse o cerco a Guimarães. Sempre tivemos esta tendência para o servilismo, para a obediência cega e parva, sem questionamentos. Somos assim; desenvolvemos, como nenhum outro povo da Ibéria, a arte de "engolir sapos", mesmo se eles são de difícil digestão, mostrando um sorriso, por mais amarelo que seja.
Se vamos ao senhor doutor para tratar das maleitas que nos afligem, lá vem a promessa de, pela páscoa, lhe fazermos chegar um borreguinho ou um cabritinho desmamado, tenrinho, ainda a saber a leite, sim, claro, porque o médico nos vai aliviar das dores que carregamos. Os mais pobres podem sempre ofertar um queijinho ou um chouriço lá da terrinha. O físico, impante na sua cátedra inquestionável e impenetrável, a olhar-nos por cima dos óculos, diz que sim, que gosta e, na volta de uns comprimidos milagrosos, ou de umas gotas, lá mais para a frente poderá seguir também, para o consultório, um perú pelo natal. Ainda hoje, mesmo acedendo a um Serviço Nacional de Saúde que pagamos com impostos, não ousamos deixar de olhar para o médico como alguém a venerar servilmente, em lugar de o vermos como profissional que é, pago para tratar da nossa saúde. A esta imagem, talvez mais diluída nos meios urbanos, juntam-se outras que têm a ver com o sacerdote católico, o pastor protestante, o advogado, com o cabo da guarda, com o presidente da câmara, etc, a quem dedicamos ridículos e servis encómios numa atitude borrega, sem paralelo conhecido a não ser o da nossa triste vocação para desistirmos com facilidade de exibir a dignidade que reside no simples facto de sermos seres humanos e cidadãos na plenitude da igualdade de direitos e deveres que independe da posição social que ocupamos . Somos, quiçá, dos únicos países do mundo chamado desenvolvido a achar que títulos académicos fazem parte, ou devem usar-se em lugar dos nomes de registo ou baptismo. Um país de doutores e engenheiros em que, mesmo aqueles que o não são exigem tratamento deferente como se o fossem. Doutor para aqui, doutor para ali, senhor engenheiro para isto senhor engenheiro para aquilo... É cultural, dizem-nos. Sim, até pode ser, mas não passa de uma cultura de penacho que assenta num servilismo a raiar a falta de coluna vertebral que se liga com a facilidade com que a vergamos por tudo e nada.
Clara Ferreira Alves constatava há tempos, numa das suas habituais crónicas no Expresso, que "outros países estão a conseguir atravessar a crise da dívida com a dignidade intacta" e só "Portugal resolveu transformar-se num país habitado por bonecos das Caldas". Dizia ainda que "o nosso desejo de agradar, de servir, perde-nos. Faz-nos perder o respeito por nós próprios". Também, num outro registo, a mesma Clara Ferreira Alves, em reportagem sobre os estragos provocados pelo furacão Sandy, nos Estados Unidos da América, e para o mesmo semanário, constatava que os milionários de Manhattan, a deslizarem nos seus carros de luxo como se fossem os donos do planeta, não fazem a menor ideia de como vivem os pobres. "Usam-nos como serviçais, e proporcionam-lhes empregos com estatuto de invisibilidade. Os portugueses, uma comunidade em Newark, são famosos pela sua honestidade e por serem criados, governantes e mulheres da limpeza de confiança. Gente que se pode meter dentro de casa. Simples, discretos, invisíveis. Sem nome nem história".
Também é certo, por aquilo que diz Clara Ferreira Alves, que pudemos, e devemos, interpretar essa atitude dos trabalhadores portugueses nos E.U. da América, por exemplo, como francamente profissional: fazem o seu trabalho com correcção, executam as suas tarefas com profissionalismo e não se metem, mais do que devem, na vida dos outros, especialmente dos seus patrões. Mas também pode igualmente ser que o servilismo cultural dos portugueses os ajude a isso tudo.
Quando Portugal esteve sob dominação espanhola, esta cultura de servilismo era levada ao extremo para com a corte Filipina: relata-nos a História de Portugal coordenada por José Mattoso, no volume 5.3, que "na corte de Filipe III [de Portugal], em Valladolid, os Castelhanos zombavam da soberba e vaidade dos portugueses: «não cuida um fidalgo português se não em que entrando na Corte, a hão-de assombrar, com os seus lacaios mais rica e custosamente vestidos do que nunca seus bisavós o fizeram nas suas vodas". Claro que o objectivo destes fidalgotes que se deslocavam a Valladolid, emproados, empoados e seguidos pelo seu séquito de serviçais, era essencialmente o de bajular o rei e assim conseguir prebendas e favores políticos. Verificamos que, afinal, o servilismo é transversal na sociedade portuguesa e já vem de antanho.
O que sabemos hoje é que dignidade não rima com servilismo e que este não deve ser confundido com capacidade de realização e disponibilidade para correcção no nosso relacionamento com tudo e com todos, bem como exigência em sermos tratados com a mesma correcção com que tratamos com que connosco trata. Ver o psicopata social Vitor Gaspar, a vergar-se até ao chão, à frente do seu "colega e amigo" alemão, Wolfgang Schäuble, em nome de Portugal, causou-me um frémito e um espasmo que me levaram ao vómito. Não teria nada contra se ele o tivesse feito em nome pessoal e no âmbito da "amizade" que o une a Schäuble, cada um lá sabe as linhas com que se cose. Agora fazê-lo em meu nome e em nome de todos os portugueses, não aceito nem admito. Se Gaspar quer ser um boneco das Caldas, como disse Clara Ferreira Alves, é problema dele e de todos os que são como ele, mas comigo não conta para o ser também. Nada justifica, sejam a crise ou as nossas presentes dificuldades, que um (des)governante português vá "lamber os sapatos" a um Schäuble qualquer em nome de um país que é tão ou mais digno quanto a Alemanha. Tenham dó, respeito por nós e pela nossa história de novecentos anos.
Jacinto Lourenço