Agora, que a espuma das notícias já se diluiu na comunicação social, que explorou à exaustão o "filão" Pingo Doce, julgo que posso reflectir um pouco sobre a campanha dos 50% desta cadeia de supermercados, especialmente porque não fico indiferente ao que se passa neste país sui géneris chamado Portugal.
Ao contrário do que uma parte da imprensa tentou fazer passar, a marcação da tal promoção para o dia 1 de Maio não foi inocente e nem se tratou de mera coincidência. A prová-lo, o facto dos patrões do Pingo Doce terem pago o dia a 500%, isso mesmo, 500%, aos trabalhadores que se apresentaram ao trabalho furando a greve convocada pelos sindicatos respectivos. Podiam ter feito a promoção, ( e não temos nada contra as promoções no comércio ) num sábado, num domingo ou num outro qualquer dia da semana, mas não, o que lhes deu mesmo jeito, com tantos dias disponíveis para isso, foi o dia 1 de Maio... Houve portanto, parece-me, a intenção clara da entidade patronal desferir um "golpe" no movimento sindical e, simultaneamente, no simbolismo do 1 de Maio que é, desde há muitos anos, como sabemos, um dia historicamente associado à luta dos trabalhadores pela dignidade do trabalho. Claro que o primeiro dia do mês de Maio, feriado nacional em boa parte dos países do mundo, não é uma "vaca sagrada" intocável, mas também é verdade que deveria merecer mais respeito seja por parte dos trabalhadores, dos patrões ou dos governos. Afinal, as efemérides valem por aquilo que representam e, de facto, para patrões e para a generalidade dos trabalhadores portugueses, valem muito pouco, hoje, a observar pela importância que uns e outros lhe dão. Hoje troca-se dignidade por meia dúzia de bolotas...
As imagens que vi na televisão, e que mostravam o interior dos supermercados e a sofreguidão das pessoas por produtos, mesmo que não lhes fizessem falta nenhuma, mostraram que os piores sentimentos existentes no ser humano podem ser despertados e vir ao de cima a qualquer momento nas situações mais inopinadas.
Não é verdade que esta campanha do Pingo Doce tenha sido ditada por sentimentos de compaixão dos donos da cadeia face à crise que atinge os mais pobres. Aliás, poucos pobres, em Portugal, podem dispor, assim do pé para a mão, sem estarem a contar, e em função de marcação aleatória de uma campanha, de cem, duzentos, trezentos euros ou mais para irem a correr fazer compras no supermercado. Quem aproveitou a campanha, tinha dinheiro para gastar, e dinheiro que não lhe iria fazer falta no imediato pois caso contrário não o teriam gasto...
A campanha dos 50% mostrou os estados de alma que norteiam muitos portugueses consumidores e alguma distribuição, e desses estados de alma emerge a face mais negra do consumismo e da ganância e ainda da falta de ética e de valores que levam alguns ditos empresários a pretenderem arrasar com a produção nacional e com tudo o que cheire a dignidade e ética empresarial no meio em que operam. Soares dos Santos deixou cair, agora completamente, a máscara de "campeão" da ética e da responsabilidade social. É quase impossível alguém voltar a acreditar nas palavras deste homem quando ele for às televisões dar "lições" de moral aos portugueses.
Finalmente uma palavra para os sindicatos e alguns partidos políticos que vieram reclamar nos media do "dumping" praticado pela Jerónimo Martins face à concorrência. Confrangedor, ver partidos e sindicatos que, à falta de outros argumentos ( e tinham-nos com fartura ), utilizavam os que seria normal serem utilizados pela concorrência do Pingo Doce. Desde quando é que o "dumping" é assunto que deva estar em primeiro plano no léxico dos sindicatos e de alguns partidos que se reclamam, principalmente, da defesa dos direitos dos trabalhadores ? Talvez fosse melhor ocuparem o seu tempo com um debate interno à volta da razão que leva milhões de trabalhadores a afastarem-se das festividades do dia do trabalhador em lugar de se preocuparem com os assuntos que a 1 de Maio deviam ser do domínio da concorrência na distribuição e das autoridades reguladoras competentes. Apenas deprimente.
Depois de 2012, o dia 1 de Maio, em Portugal, não voltará a ser olhado da mesma maneira, para mal dos trabalhadores, dos sindicatos e de alguns empresários com "e" pequeno. O consumismo irresponsável e a ganância, esses continuam a dar cartas e a ter via aberta para um futuro sem ética nem padrões de espécie nenhuma na vida de muita gente.
Jacinto Lourenço