O despertador tocou, como habitualmente, às oito e meia da manhã de uma quinta-feira normal de uma semana qualquer. A D.Ilda entrou esbaforida no meu quarto a dizer que tinha havido uma revolução. Lavei-me à pressa, enfiei a roupa e fui, como habitualmente, a pé, do Alto do Pina até à rua Zaire, ali para o pé dos anjos, para a empresa onde trabalhava. Pelo caminho fui observando os rostos das pessoas e as suas reacções. Percebi um misto de esperança e receio. Na Paiva Couceiro alguns grupos de homens mais velhos conversavam meio em surdina; adivinhei o tema das conversas e continuei a andar. Nunca antes tinha chegado tão rápido ao emprego. No escritório os meus colegas seguiam interessados a emissão da rádio. Ninguém estava a trabalhar. Fomos percebendo, pelas notícias, a realidade do que se estava a passar nas ruas de Lisboa e a intenção dos militares que se tinham sublevado.
Vivi o 25 de Abril de 1974 com muita intensidade. Tinha vinte anos acabados de fazer em Março. Apresentara-me já à inspecção militar e sabia que, como qualquer jovem português de então, o meu destino seria cumprir cerca de quatro anos de tropa obrigatória sendo dois deles no então designado Ultramar. Quatro anos na vida de um jovem na casa dos vinte, a cumprir serviço militar obrigatório, eram sem dúvida um tempo de interregno que comprometia aspirações e punha em causa a própria vida. Muitos fugiam para o estrangeiro para não obedecerem a esse chamamento do regime a uma guerra injusta que não fazia qualquer sentido. França era o destino mais corrente dos mais politizados, dos que tinham família emigrada ou dos que possuiam suporte financeiro familiar para por lá ficarem o tempo necessário. Eu não me enquadrava em nenhum destes perfis pelo que, era mais do que certo, iria para o ultramar. Sem dúvida um cenário que apavorava.
Trinta e nove anos depois, os portugueses já não exibem o sorriso daquele dia vinte e cinco de Abril de 1974. O que sobra é apreensão e tristeza. Interrogam-se como é que deixaram que lhes retirassem coisas importantes que Abril lhes deu, que os amesquinhassem, que voltassem a espezinhá-los como no tempo do Salazarismo o Marcelismo. Desconfiam de si próprios e da sua capacidade para se voltarem a erguer e a lutar por liberdade, direitos e dignidade. Desconfiam que não conseguirão readquirir o sorriso e a alegria que lhes roubaram neste percurso de quase quatro décadas de liberdade . Sabem que Salgueiro Maia já partiu e que em Portugal existem cada vez menos homens e mulheres com coluna vertebral e verticalidade suficientes para se erguerem em prol do que deixámos que se esboroasse às mãos de inimigos e falsos amigos do povo português. Os cravos perderam a sua cor quando o capitão partiu.
Jacinto Lourenço