Sobre o poder encantatório da música disse Homero na Odisseia. Era tanta a beleza, a doçura, o fascínio e o feitiço do canto das sereias que, para não correrem o perigo da atracção e da morte, Ulisses ordenou que tapassem com cera os ouvidos dos marinheiros e a ele o amarrassem sem possibilidade de fuga ao mastro do navio.
Não há nenhum povo sem música. Nada de tão material como a música: a voz, instrumentos de sopro, de percussão e de cordas e disso tudo resulta o que nos enleva, nos transporta para a transcendência, nos coloca lá no donde viemos e lá para onde verdadeiramente queremos ir e habitar. Feita de tempo, a música pára o tempo, transcende o tempo e tange o eterno. Ali, onde quereríamos estar sempre, e já não há morte.
Por isso, Ernst Bloch disse que a música é "a mais utópica das artes". Ela é o divino no mundo ou, pelo menos, o que nos abre à experiência do divino. Aí está a beleza, que, no dizer de Dostoiévski, "salvará o mundo". O belo abre a porta do que normalmente, no meio da banalidade rasante, se não vê nem ouve. Mas, quando se viu o invisível e se ouviu o inaudível e a sua beleza, tudo se transfigura e reconcilia. Este mundo torna-se outro, sem deixar de ser este. Daí, a exclamação de felicidade, que também os discípulos experimentaram, aquando da transfiguração de Jesus: "Como é bom estar aqui!"
No belo, tornamo-nos vizinhos imediatos do próprio transcendente. Como escreveu George Steiner, "a poesia, a arte, a música são os meios portadores desta vizinhança". A música, nomeadamente, é inseparável do sentimento religioso: "Ela foi durante muito tempo, continua a ser hoje, a teologia não escrita dos que não têm ou recusam qualquer crença formal."
Até pela negativa, através do dilacerante, o que ela procura é a harmonia. Como escreveu Fernando Savater, "na denúncia que falta vê-se contra a luz a possibilidade futura daquilo que poderia ser a plenitude".[...]
Anselmo Borges in Diário de Notícias Online