É um salmo que trata sobretudo dos atributos de Deus e dos limites do Homem. Para o bispo anglicano era o salmo da profundidade de Deus.
Para nos ajudar a entender a incomensurável distância que vai entre esses atributos divinos e o homem limitado, o salmista usou uma linguagem poética com referentes e objectos comunicáveis, que o nosso espírito e a nossa mente podem compreender.
Situa-nos, por assim dizer, num Átomo divino, numa pequeníssima parte das faculdades distintivas e únicas de Deus, contudo distante do pensamento humano e usa um termo que viria séculos depois, dizendo que «tal conhecimento (ciência) é maravilhosíssimo».
Tal «ciência» (na versão das nossas Bíblias) ou o que o salmista entende como tal, reflecte o que o termo hebraico ( da’ath) significa e amplia: conhecer ou saber acima de.
Introduz também o leitor crente nos domínios da relação de Deus com a Sua Criatura, o homem, e, segundo alguns autores, o homem crente, porquanto o Senhor está ao redor daqueles que o temem e sobre eles coloca a Sua mão
Não deixa, porém, de colocar a limitação do ser humano perante o Todo-Poderoso, ao pôr na boca do Eu poético estas palavras de resignação à condição humana: «Para onde me irei do teu Espírito ou para onde fugirei da tua face?» (vs.7)
Mais de vinte e cinco séculos depois da criação literária do Salmo 139, como uma produção do sentimento religioso, da inspiração espiritual e de uma categoria lírico-poética da literatura nacional hebraica, um bispo anglicano do século XX, John Albert Thomas Robinson, afirma que se trata de «uma meditação penetrante sobre a presença de Deus», no mundo que Ele próprio criou.
Escreveu para reforçar o que classificou de retorno ao que a Bíblia nos diz acerca da natureza de Deus, o seguinte: «É no salmo 139 que se encontra uma das meditações mais penetrantes, em toda a história da literatura, sobre o sentido e a presença de Deus. Nele perpassa, como em nenhum outro trecho, o sentido da maravilha suprema irresistível da omnipresença divina em todas as direcções – acima, abaixo, atrás e à frente.»(Um Deus Diferente, Morais Editora, 1967, págs. 70/1
É salmo que tem o locus classicus para a doutrina da omnipresença e da omnisciência de Deus.
Esta afirmação seria comum e resultante de uma normal análise de conteúdo do discurso poético do salmo em questão, não fosse ela pronunciada por quem foi, por isso não é um pronunciamento trivial.
A verdade é que, não sendo tal apreciação do bispo anglicano contestável, foi-o porém o seu autor enquanto uma totalidade personalizada numa marca teológica que colocava com honestidade intelectual e espiritual as suas dúvidas numa década especial, que foi a de 60.
«Às vezes, também eu me sinto assediado por estas dúvidas»- escreveu Robinson. No tempo em que se questionava se era de facto o vazio que muitos sentiam, «um vácuo em forma de Deus», especialmente na Europa pós-nazismo.
Tratava-se de um teólogo controverso e um dos criadores da teologia radical protestante dos anos 50 e seguintes. Não uma teologia heterodoxa, contrária ao Evangelho, mas radicada no que ele chamava um cristianismo de raiz ( daí o termo radical) que deveria chocar pelo radicalismo cristão, porque era, segundo ele e nós próprios ainda hoje, necessário apresentar o Deus da Bíblia ao homem hodierno que acha que não precisa de Deus, que Este está «lá em cima» ou em outro qualquer lugar e desinteressado dos problemas «cá de baixo», e do próprio homem.
Foi o mesmo teólogo e bispo de Woolwich, na Grã Bretanha, que proferiu um aforismo cristão genial, que a Igreja não deve estar tão longe do mundo que ninguém a ouça, nem tão dentro que não se distinga (citei de cor e sem referência).
A sua preocupação levou-o porém a defender algumas posições que acabaram por ser controversas, sustentando-se sobretudo no pensamento teológico de Rodolf Bultmann, que o homem secular já não admite que Deus é real nos nossos dias. E também que as Escrituras estão antiquadas quanto a fazerem compreender o ponto de vista de Deus presente no mundo tanto quanto Deus «lá em cima».
John A.T.Robinson marcou, de facto, o início da década de 60 ao radicalizar a teologia protestante e ao retomar a ideia luterana do Deus Absconditus.
Contudo, a partir do facto de que se trata de uma prova da presença de Deus no mundo, transcendente ao universo, mas imanente à Sua Criação, integra o salmo na sua mais polémica obra, Honest to God (Um Deus Diferente), de 1963, a contra-corrente, todavia como a mais perfeita doutrina da Omnipotência e da Omnisciência de Deus, que é o salmo 139.
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João Tomaz Parreira
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-Colaborador-