"Nosso
desejo é, e a este ofício da Santa Inquisição pertence, estripar e arrancar e
apartar dentro os cristãos estas malvadas e perniciosas heresias e seitas que a
nossa Santa fé católica a qual a Santa madre Igreja tem e prega preservar e
seja guardada, para que os cristãos que em ela crêem se hajam de salvar"
Como escreveu Sofia Aparecida de Siqueira:
“O Santo Oficio da Inquisição contra a herética pravidade e apostasia
inseriu-se em Portugal exactamente no momento da passagem do Renascimento para o
Barroco. Configurada pela mentalidade do tempo, a reflectir-se em cada aspecto
de sua existência, é exemplo institucional de um período da história do
Ocidente. Portanto, é de mister ver-se a história do Santo Oficio em suas
conexões com sua época, isto é, com os
séculos da Modernidade.
Importa
a reconstituição da atmosfera mental do tempo, quando religião era valor
vinculado à vida colectiva, a sugerir ou a comandar a empresa de se vencer o
mal pelo bem. Mal e bem conforme aqueles homens, os definiam, haurindo
inspirações gerais que dominavam motivos, conceitos, estilos de vida,
comportamentos.
Cada
época elabora um plano de unidade – que é condição de sobrevivência da
sociedade – com seus caracteres próprios. Cria-se, assim, um ‘sistema mental’
que aprisiona os indivíduos como numa cerca e nutre as intolerâncias que o
modelam. Este ‘sistema mental’ pode sofrer rupturas. Com essas rupturas lidou o
Ocidente e, dentro dele, Portugal, no fim do Século XV e primeiras décadas do
XVI.
O
descortino de novos mundos e de outros povos fora convite para repensar a
realidade e a condição humana. Implicara na renovação das inteligências, dos
costumes, das ideias, dos sentimentos e do pensamento. Abrigara desafios à
inteligência, o tratamento racionalista dos dados. Fixara uma ideia do
progresso: superar a Idade Média, Na ordem político-social, o Estado procurava
substituir a Cristandade. Ruía, aos poucos, o mundo teocêntrico, garantido pela
autoridade da Santa Sé, do clero, da tradição. Concepções novas dos filósofos
enlaçavam-se com opiniões novas dos políticos. Contra os tomistas e escotistas,
levantavam-se os nominalistas, buscando liberar a razão das afirmações da fé.
Havia uma forte tensão espiritual, resultante de conflitos íntimos. As
fermentações críticas rompiam a unidade do pensamento, liberavam uma
disparidade que, por sua vez, engendravam a instabilidade dos espíritos. O
teste da liberdade, o imperativo das opções que se multiplicavam acabou por
aninhar o desassossego até à angústia, Tentando recuperar o Cristianismo, pela
volta às fontes puras, mediante enriquecimento pelas filosofias antigas, para a
reconstrução do edifício havia-se atingido os seus alicerces, seus fundamentos,
e com isto, paradoxalmente, abalara-se o próprio edifício. A razão, intentando
servir à crença, ameaçava sacrificar crença serviço da razão.
Essa
recolocação dos problemas do espírito favorecia o desenvolvimento de uma actividade
livre e independente, Mudava-se, gradativamente, nos diversos países da Europa,
a própria maneira de encarar o mundo. Infiltrava-se um pendor sensualista,
definido por Campanella, um neo-nominalismo passou a ensinar que se devia
partir da experiência sensível pra se apreenderem as coisas.
A
ciência empírica procurava libertar-se da física aristotélica para se
transformar numa ‘experiência’. O conhecimento oriundo da experiência era
confrontado com o conhecimento proveniente das teorias. Muitas das supostas
conquistas definitivas da humanidade passavam a sofrer correcções e
desmentidos. E alguns homens foram levados, diante dos factos, a formular
juízos de valor sobre certas ideias medievais e a fixar novos critérios para
aferir os seus conhecimentos. Esboçava-se, em certos sectores, um método que
levava a outro tipo de conhecimento racional, ao conhecimento científico do
mundo: o exercício da crítica sobre a experiência, tendo experiência como
condição para alcançar verdade.
Quando
o homem acolheu diferentes concepções sobre si próprio e sobre o mundo, e
aceitou novos valores dele advindos, entrou em crise. Crise do espirito, da
inteligência e do sentimento. Desorientou-se. Nesse desnorteamento,
incluíram-se as suas relações com Deus e o seu comportamento. Portugal partilhou as crises do Ocidente.
Esse
alargamento do campo cultural, elaboração de nova mentalidade, recebeu grande
impulso da expansão ultramarina. A orientação experimental que tomou o grupo
ligado às actividades náuticas contrapôs-se à cultura universitária, de cunho
teórico e livresco, amarrado ao Tomismo.
O
catolicismo era a prevalente do génio próprio dos portugueses da época. Por
isso, quando buscaram a adopção das novas ideias, dos novos princípios, dos
novos costumes, submeteram-nos, primeiro, ao crivo de sua fé e aceitaram o que
se escoou temerosamente. Do naturalismo
nas especulações científicas, filosóficas e políticas, foi veículo o
franciscanismo – São Boaventura, Guilherme de Ocam. André de Resende, o
humanista, um dos melhores representantes do espírito novo, esforçou-se para
ser, ao mesmo tempo, christianus et ciceronianus. Francisco Sanches, não
obstante seu agudo senso crítico, emudeceu em relação às dúvidas lançadas à
crença, Na Rópica Pnefma João de Barros fez a apologia da ‘razão católica’.
Aceitou-se
o espírito novo, desde que esse se coadunasse com a autoridade da Igreja e a
integridade da crença. O criticismo não poupava a vida religiosa, os usos e
abusos da clerezia. Mas a fidelidade acatava a autoridade do Papa, as linhas
mestras do dogma e da piedade cristãs, reconhecia a missão do sacerdócio.
Buscavam-se modificações – eram próprias das inquietudes do tempo – mas
endereçavam-se à cristianização da vida, não ao enfraquecimento da
Igreja." [...]
Fonte: O Portal da História