terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A Inquisição em Portugal




"Nosso desejo é, e a este ofício da Santa Inquisição pertence, estripar e arrancar e apartar dentro os cristãos estas malvadas e perniciosas heresias e seitas que a nossa Santa fé católica a qual a Santa madre Igreja tem e prega preservar e seja guardada, para que os cristãos que em ela crêem se hajam de salvar"


Como escreveu Sofia Aparecida de Siqueira: “O Santo Oficio da Inquisição contra a herética pravidade e apostasia inseriu-se em Portugal exactamente no momento da passagem do Renascimento para o Barroco. Configurada pela mentalidade do tempo, a reflectir-se em cada aspecto de sua existência, é exemplo institucional de um período da história do Ocidente. Portanto, é de mister ver-se a história do Santo Oficio em suas conexões com sua  época, isto é, com os séculos da Modernidade.

Importa a reconstituição da atmosfera mental do tempo, quando religião era valor vinculado à vida colectiva, a sugerir ou a comandar a empresa de se vencer o mal pelo bem. Mal e bem conforme aqueles homens, os definiam, haurindo inspirações gerais que dominavam motivos, conceitos, estilos de vida, comportamentos.
Cada época elabora um plano de unidade – que é condição de sobrevivência da sociedade – com seus caracteres próprios. Cria-se, assim, um ‘sistema mental’ que aprisiona os indivíduos como numa cerca e nutre as intolerâncias que o modelam. Este ‘sistema mental’ pode sofrer rupturas. Com essas rupturas lidou o Ocidente e, dentro dele, Portugal, no fim do Século XV e primeiras décadas do XVI.

O descortino de novos mundos e de outros povos fora convite para repensar a realidade e a condição humana. Implicara na renovação das inteligências, dos costumes, das ideias, dos sentimentos e do pensamento. Abrigara desafios à inteligência, o tratamento racionalista dos dados. Fixara uma ideia do progresso: superar a Idade Média, Na ordem político-social, o Estado procurava substituir a Cristandade. Ruía, aos poucos, o mundo teocêntrico, garantido pela autoridade da Santa Sé, do clero, da tradição. Concepções novas dos filósofos enlaçavam-se com opiniões novas dos políticos. Contra os tomistas e escotistas, levantavam-se os nominalistas, buscando liberar a razão das afirmações da fé. Havia uma forte tensão espiritual, resultante de conflitos íntimos. As fermentações críticas rompiam a unidade do pensamento, liberavam uma disparidade que, por sua vez, engendravam a instabilidade dos espíritos. O teste da liberdade, o imperativo das opções que se multiplicavam acabou por aninhar o desassossego até à angústia, Tentando recuperar o Cristianismo, pela volta às fontes puras, mediante enriquecimento pelas filosofias antigas, para a reconstrução do edifício havia-se atingido os seus alicerces, seus fundamentos, e com isto, paradoxalmente, abalara-se o próprio edifício. A razão, intentando servir à crença, ameaçava sacrificar crença serviço da razão.

Essa recolocação dos problemas do espírito favorecia o desenvolvimento de uma actividade livre e independente, Mudava-se, gradativamente, nos diversos países da Europa, a própria maneira de encarar o mundo. Infiltrava-se um pendor sensualista, definido por Campanella, um neo-nominalismo passou a ensinar que se devia partir da experiência sensível pra se apreenderem as coisas.
A ciência empírica procurava libertar-se da física aristotélica para se transformar numa ‘experiência’. O conhecimento oriundo da experiência era confrontado com o conhecimento proveniente das teorias. Muitas das supostas conquistas definitivas da humanidade passavam a sofrer correcções e desmentidos. E alguns homens foram levados, diante dos factos, a formular juízos de valor sobre certas ideias medievais e a fixar novos critérios para aferir os seus conhecimentos. Esboçava-se, em certos sectores, um método que levava a outro tipo de conhecimento racional, ao conhecimento científico do mundo: o exercício da crítica sobre a experiência, tendo experiência como condição para alcançar verdade.
Quando o homem acolheu diferentes concepções sobre si próprio e sobre o mundo, e aceitou novos valores dele advindos, entrou em crise. Crise do espirito, da inteligência e do sentimento. Desorientou-se. Nesse desnorteamento, incluíram-se as suas relações com Deus e o seu comportamento.  Portugal partilhou as crises do Ocidente.

Esse alargamento do campo cultural, elaboração de nova mentalidade, recebeu grande impulso da expansão ultramarina. A orientação experimental que tomou o grupo ligado às actividades náuticas contrapôs-se à cultura universitária, de cunho teórico e livresco, amarrado ao Tomismo.
O catolicismo era a prevalente do génio próprio dos portugueses da época. Por isso, quando buscaram a adopção das novas ideias, dos novos princípios, dos novos costumes, submeteram-nos, primeiro, ao crivo de sua fé e aceitaram o que se escoou temerosamente. Do  naturalismo nas especulações científicas, filosóficas e políticas, foi veículo o franciscanismo – São Boaventura, Guilherme de Ocam. André de Resende, o humanista, um dos melhores representantes do espírito novo, esforçou-se para ser, ao mesmo tempo, christianus et ciceronianus. Francisco Sanches, não obstante seu agudo senso crítico, emudeceu em relação às dúvidas lançadas à crença, Na Rópica Pnefma João de Barros fez a apologia da ‘razão católica’.

Aceitou-se o espírito novo, desde que esse se coadunasse com a autoridade da Igreja e a integridade da crença. O criticismo não poupava a vida religiosa, os usos e abusos da clerezia. Mas a fidelidade acatava a autoridade do Papa, as linhas mestras do dogma e da piedade cristãs, reconhecia a missão do sacerdócio. Buscavam-se modificações – eram próprias das inquietudes do tempo – mas endereçavam-se à cristianização da vida, não ao enfraquecimento da Igreja." [...]


Fonte: O Portal da História