Primeiro íamos ( quem ia ) ao futebol em família, pais, mães, filhos, ou então em grupos de amigos, e era uma festa, um convívio. Não se escolhiam lugares em função das cores clubísticas, salvo nas bancadas dedicadas aos indefectíveis sócios, sentáva-nos onde nos parecia termos a melhor perspectiva do jogo ou então onde havia lugares disponíveis em dia de enchente. Ao nosso lado até podia estar um adepto da equipa adversária que isso não era problema nenhum; ele puxava pela equipa dele e entusiasmava-se com os jogadores dele e nós puxávamos pelos nossos. Acontecia trocarem-se comentários ou estabelecerem-se mini-debates, mais ou menos acalorados, sobre o que se via no campo, de bom ou de mau, de uma e de outra cor. Mas um jogo de futebol era sempre uma festa. Lá havia um ou outro mais exaltado e aguerrido que levava as coisas a peito e isso dava às vezes lugar a pequenos "tsunamis" de agitação na bancada que tratavam de ser acalmados por quem estava perto ou, caso disso, o que era raro, pelos agentes da autoridade de serviço que conduziam o exaltado adepto ao exterior para "apanhar um pouco de ar fresco" longe de quem gostava do futebol apenas porque era uma festa e não um ringue de box. Claro que o futebol movia ( e move ) paixões e, por isso, promovia eventualmente comportamentos mais desbragados de um ou outro espectador menos controlado emocionalmente. Mas, genericamente, quando se ia ao futebol, era ir a uma festa de gente de todas as idades, cheia de colorido, de alegria, de diversidade, de vozes soltas e vibrantes. Contudo, logo que o árbitro fazia soar o apito para começar o jogo todos os olhares se concentravam no que acontecia dentro das quatro linhas, e pouco mais, e era só isso que fazia sofrer, saltar, sorrir ou explodir de alegria pelo golo. Sim , era assim o futebol, no seu estado mais puro e onde a vítima de quem perdia, regra geral, era a mãe do árbitro, mesmo se ninguém conhecia a senhora. Claro, no fim queríamos sempre que a nossa equipa ganhasse, mas não era um caso de vida ou de morte, e nem sequer chegava a tirar-nos o apetite do jantar se acontecesse o contrário.
De há uns anos para cá apareceram no futebol uns senhores meio mal engravatados, lustrosos, com verbo tosco e gestos largos, desejosos de protagonismo que, não conseguindo alcançar nas suas comunidades, por manifesta incapacidade pessoal ou falta de mérito; subitamente enriquecidos por negócios especulativos feitos, quase sempre, na área da construção civil; beneficiários da tal bolha imobiliária, de que tanto se falou já, ou portadores de uma pérfida capacidade de ludibriar e manipular os clubes e os seus sócios, para se instalaram nas direcções com a promessa de conseguirem os objectivos desportivos ansiados pelos sócios e adeptos. Esta estirpe de gente fomentou, dentro do campo, onde era suposto o futebol jogado com os pés ser a coisa estritamente exibida, e fora do campo, um ambiente que foi e é propício mais a eles do que ao clube que tinham tomado. Os sócios e adeptos, sedentos de títulos e cegados pela paixão clubística, deixaram-se invadir por esta praga de dirigentes. A meio deste processo, os tais putativos dirigentes foram gerando condições objectivas ou subjectivas para o aparecimento das conhecidas claques que pululam por aí e onde, na generalidade, se arrebanharam um conjunto de arruaceiros que, para além de causarem distúrbios e trazerem o ódio para os campos de futebol, nada mais fazem do que dar trabalho à polícia e denegrirem e prejudicarem a imagem do desporto, afastando em definitivo as famílias para longe dos estádios e outras pessoas que, de um jogo de futebol, queriam colher um momento de pura descontração, ambiente festivo e convívio salutar. A cultura das claques é a da violência pela violência. É o do quanto pior melhor. E se não puder ser dentro dos estádios há-de ser fora deles, independendo se a sua equipa ganha, perde ou empata. Não é isso que os move. Os dirigentes, esses, claro, seguem em frente na sua acção devastadora do desporto dito rei, e das instituições, assobiando para o lado e fingindo ignorar a criatura e as malfeitorias do pequeno monstro que incubaram dentro do futebol.
A verdade é que é fácil ver que, quando estas tais claques "organizadas", como lhe chamam, entram nos estádios onde se vai realizar um qualquer jogo, passam a maior parte do tempo viradas de costas para ele. A sua única preocupação é a desestabilização do ambiente desportivo e festivo que no estádio devia ser gerado pela festa do futebol jogado. O principal objectivo, a sua grande motivação nos noventa minutos ou mais que dure a peleja no relvado, é ofender, seja por palavras ou gestos, e arremessar objectos mais ou menos contundentes sobre tudo o que mexe à sua volta. É impossível que gente desta goste de futebol ou do desporto pelo desporto. Os seus valores são outros e não têm a ver com um jogo de bola, tal como os dos seus mentores. Mas será que tudo aquilo que de mau demanda o futebol através das claques preocupa seriamente os ditos dirigentes dos clubes e mentores das acirradas claques? Claro que não. Se preocupasse já tinham acabado com elas. Parece óbvio ser do interesse dos dirigentes terem cães acirrados que façam algum trabalho sujo que eles não querem fazer; depois, bem, depois quando as coisas acontecem podem sempre demarcar-se, hipocritamente, dos desmandos provocados por aqueles que açularam com as suas palavras de ódio e incitações maldosas dirigidas aos clubes rivais.
Estes dirigentes que tomaram o futebol como se fora um negócio seu, têm passado, nas últimas décadas, todo o tempo, a semear ódios e ventos. Ora, como bem sabemos, ódio gera ódio e quem semeia ventos só pode esperar colher tempestades. Estas pessoas usam os clubes como instrumentos de ataques pessoais e institucionais e transformam os atletas que representam os clubes em joguetes das suas políticas, ditas "desportivas", aproveitando-se muitas vezes da instabilidade emocional destes, da avidez dos seus empresários, e do seu desejo por, ganhos, brilho e glória rápida, de uns e de outros, capazes de os guindarem a mais altos voos. Há um chicote psicológico nas mãos de cada dirigente de clube pronto a cair em cima de quem não apresente resultados imediatos que alimente a sua sede de protagonismo e lhes promova e afague o ego. Nessa demanda promovem uma política de "eucalipto" secando tudo à sua volta e devastando clubes e instituições que expostos à mercê das suas megalomanias. Envolvem governos, bancos, cidadãos, empresários, câmaras municipais, juntas de freguesia e, se necessário, gente da mais baixa ralé nas suas "guerras" contra hipotéticos "sistemas". Querem ser donos da cidade. O seu ego é enorme e insaciável por cada vez mais protagonismo e exibição. As suas atoardas nos meios de comunicação são setas envenenadas, mas vistas como garantia de facturação pelas empresas de media que, como bem sabemos, produzem uma informação que raia muitas vezes o asco. Poucos dirigentes, muito poucos, têm feito bem ao futebol e ao desporto em geral no país; pelo contrário: os resultados da sua maléfica acção estão à vista, todas as semanas, nas bancadas dos estádios, nos orgãos de comunicação, nos tribunais.
Tenho pena que o futebol se tenha deixado conquistar por esta gente, até porque sou de uma geração que cresceu em Portugal tendo praticamente como únicas referências capazes de sustentar algum orgulho nacional a nossa história passada e o futebol que, lá fora, e às vezes, se agigantava e ganhava, volta e meia, um jogo ou um troféu que nos deixava a pensar que também éramos gente e que nos chegava a dar a ideia de que, afinal, podíamos ombrear com os grandes da europa em alguma coisa, mesmo que isso não passasse de uma ilusão...
É assim, a nossa vida, em Portugal. Parece-me bem que um dos nossos principais defeitos, enquanto povo, é não estarmos dispostos a escrutinar, convenientemente, as competências e interesses de quem se propõe dirigir-nos, seja na política, no desporto ou até noutros sectores da vida. Normalmente vamos na cantiga de embalo fácil de homens e mulheres, sacos de vento, que não passam afinal de maus pagadores de promessas. E, promessas, como bem sabemos, leva-as o vento.
Não é muita a diferença entre a realidade do futebol e a realidade do país.
Não é muita a diferença entre a realidade do futebol e a realidade do país.
Talvez por isso mesmo, as consequências acabam sempre por vir bater à nossa porta, mais cedo que tarde, e são-nos servidas a frio, como se de uma vingança se tratasse. Uma vingança do tempo e do modo como fazemos as nossas escolhas, ou deixamos que outros as façam por nós.
Jacinto Lourenço
Jacinto Lourenço