Para além do que ouvia os adultos falarem entre si, em surdina, sobre a falta de liberdade, da censura, da PIDE e da tortura aos presos políticos, entre os quais se encontraram membros da minha família, da marginalização cultural, do subdesenvolvimento da educação, etc, não tenho uma memória muito viva do que foi o regime político que caiu a 25 de Abril de 1974. Já o mesmo não acontece quanto ao regime democrático estabelecido pós Abril. Acompanhei e vivi in loco, e de facto, estes últimos 38 anos com um misto de expectativa, esperança, alegria e tristeza. Vi como a sociedade portuguesa evoluiu e atingiu patamares de desenvolvimento nunca antes imaginados, mas senti também o quanto a democracia portuguesa e o país estavam expostos aos aventureirismos políticos de alguns, à sede de protoganismo de muitos, e ao compadrio e clientelismo que levaram os partidos políticos maioritários a "assaltarem" o aparelho de estado e a instalarem-se e dominarem, a seu belo prazer, os centros de controlo económico como sanguessugas que retiraram todo a seiva e esperança que a democracia podia deixar antever para o futuro. Agora dizem-nos que somos todos culpados. Devo afirmar desde já que a mim, e a milhões de portugueses na minha situação, o estado nunca deu nada, bem pelo contrário, sou um contribuinte líquido para os seus cofres há mais de 40 anos. Por isso, não me venham dizer que sou co-responsável da situação a que o país chegou. Tudo o que tenho ou alcancei na vida, paguei do meu bolso com recursos provenientes exclusivamente do meu trabalho: a minha educação e dos meus filhos, a minha casa, o meu carro, etc. Em nenhum momento recebi algo do estado que não tivesse já pago.
Felizmente, nunca tive necessidade de internamentos hospitalares, não sofro de doenças crónicas graves que precisem tratamentos dispendiosos, nunca usufrui de juros bonificados para aquisição de habitação, nunca deixei de pagar integral e atempadamente tudo o que o estado me pedia daquilo a que se achava com direito, e também nunca pedi ao estado, a qualquer governo ou instituição estatal, que fosse meu fiador. Até há pouco tempo, mais ou menos de há um ano a esta parte, pese embora entendesse que dera sempre mais ao estado do que dele recebera, não me sentia particularmente espoliado. As minhas contribuições, os meus impostos estavam a ajudar o país a desenvolver-se, juntamente com os impostos de outros portugueses que, como eu, recorreram ao estado pouco ou nada, estavam a chegar às mãos de velhos, crianças, doentes, à cultura, à educação de portugueses a quem a vida, no seu percurso, castigou ou castiga mais do que a mim. Até há um ano atrás eu tinha a nítida sensação de que a solidariedade social valia a pena e era necessária e que o que o estado me pedia era, grosso modo, razoavelmente encaminhado para esse objectivo. Os meus impostos faziam algum sentido. O país, como a minha vida e a de muitos outros portugueses, não era um mar de rosas, mas havia esperança, convicção, em maior ou menor grau do caminho que estava a ser percorrido. Até que chegaram o "pântano" de Guterres e a "tanga" de Durão e nenhum deles quis ficar por cá a assistir ao deslizamento do país rumo ao inexplicável. Depois aportaram as loucuras Socráticas e a ganância da esquerda e da direita pelo bolo dos votos que fizeram abrir uma larga pista de aterragem aos ultra neo-liberais que nos governam e que têm uma única ideia para apresentar aos portugueses: destruição total e implacável das nossas vidas e de tudo o que de bom tinha até agora sido construído. Parece-nos que este (des)governo saiu directamente do inferno e que, como disse Pacheco Pereira, "o Diabo vai a conselho de ministros".
Querem convencer-nos de que os culpados somos nós, e eu concordo: quem andou trinta e oito anos a sustentar a devassidão e o proxenetismo sócio-económico da maioria dos políticos e das suas clientelas partidárias é realmente culpado pela situação do país... Claro que isto só pode dar para a ironia.
Querem os culpados ? Então procurem nos aparelhos partidários, nas grandes empresas públicas e institucionais, nos bancos, em algumas das maiores empresas privadas, etc. Estão aí culpados. Procurem em Paris, em Cabo Verde, no Algarve, no governo e fora dele, na oposição, nos gabinetes dos conselheiros, nos grandes escritórios de advogados. Procurem aí e vão encontrar todos os culpados da situação em que o país se encontra e todos os ladrões que nos roubaram o presente e o futuro. Só não encontram se não quiserem. Até porque, vez por outra, frequentam todos os mesmos banquetes, foruns e conferências. E o diabo lá continua a servi-los e a segredar-lhes novas ideias de como esmagar os portugueses...
Jacinto Lourenço