O primeiro-ministro anunciou que íamos empobrecer, com aquele
desígnio de falar "verdade", que consiste na banalização do mal, para
que nos resignemos mais suavemente. Ao lado, uma espécie de contabilista a
nível nacional diz-nos, como é hábito nos contabilistas, que as contas são
difíceis de perceber, mas que os números são crus. Os agiotas batem à porta e
eles afinal até são amigos dos agiotas. Que não tivéssemos caído na asneira de
empenhar os brincos, os anéis e as pulseiras para comprar a máquina de lavar
alemã. E agora as jóias não valem nada. Mas o vendedor prometeu-nos que... Não
interessa.
Vamos empobrecer. Já vivi num país assim. Um país onde os
"remediados" só compravam fruta para as crianças e os pomares estavam
rodeados de muros encimados por vidros de garrafa partidos, onde as crianças
mais pobres se espetavam, se tentassem ir às árvores. Um país onde se ia ao
talho comprar um bife que se pedia "mais tenrinho" para os mais
pequenos, onde convinha que o peixe não cheirasse "a fénico". Não,
não era a "alimentação mediterrânica", nos meios industriais e no
interior isolado, era a sobrevivência.
Na terra onde nasci, os operários corticeiros, quando adoeciam
ou deixavam de trabalhar vinham para a rua pedir esmola (como é que vão fazer
agora os desempregados de "longa" duração, ou seja, ao fim de um ano
e meio?). Nessa mesma terra deambulavam também pela rua os operários e
operárias que o sempre branqueado Alfredo da Silva e seus descendentes punham
na rua nos "balões" ("Olha, hoje houve um ' balão' na Cuf,
coitados!"). Nesse país, os pobres espreitavam pelos portões da quinta dos
Patiño e de outros, para ver "como é que elas iam vestidas".
Nesse país morriam muitos recém-nascidos e muitas mães durante o
parto e após o parto. Mas havia a "obra das Mães" e fazia-se
anualmente "o berço" nos liceus femininos onde se colocavam
camisinhas, casaquinhos e demais enxoval, com laçarotes, tules e rendas e o
mais premiado e os outros eram entregues a famílias pobres bem- comportadas (o
que incluía, é óbvio, casamento pela Igreja).
Na terra onde nasci e vivi, o hospital estava entregue à
Misericórdia. Nesse, como em todos os das Misericórdias, o provedor decidia em
absoluto os desígnios do hospital. Era um senhor rural e arcaico, vestido de
samarra, evidentemente não médico, que escolhia no catálogo os aparelhos de
fisioterapia, contratava as religiosas e os médicos, atendia os pedidos dos
administrativos ("Ó senhor provedor, preciso de comprar sapatos para o meu
filho"). As pessoas iam à "Caixa", que dependia do regime de
trabalho (ainda hoje quase 40 anos depois muitos pensam que é assim), iam aos
hospitais e pagavam de acordo com o escalão. E tudo dependia da Assistência. O
nome diz tudo. Andavam desdentadas, os abcessos dentários transformavam-se em
grandes massas destinadas a operação e a serem focos de septicemia, as listas
de cirurgia eram arbitrárias. As enfermarias dos hospitais estavam cheias de
doentes com cirroses provocadas por muito vinho e pouca proteína. E
generalizadamente o vinho era barato e uma "boa zurrapa".
E todos por todo o lado pediam "um jeitinho", "um
empenhozinho", "um padrinho", "depois dou-lhe qualquer
coisinha", "olhe que no Natal não me esqueço de si" e procuravam
"conhecer lá alguém".
Na província, alguns, poucos, tinham acesso às primeiras letras
(e últimas) através de regentes escolares, que elas próprias só tinham a quarta
classe. Também na província não havia livrarias (abençoadas bibliotecas
itinerantes da Gulbenkian), nem teatro, nem cinema.
Aos meninos e meninas dos poucos liceus (aquilo é que eram
elites!) era recomendado não se darem com os das escolas técnicas. E a uma
rapariga do liceu caía muito mal namorar alguém dessa outra casta. Para tratar
uma mulher havia um léxico hierárquico: você, ó; tiazinha; senhora (Maria);
dona; senhora dona e... supremo desígnio - Madame.
Os funcionários públicos eram tratados depreciativamente por
"mangas-de-alpaca" porque usavam duas meias mangas com elásticos no
punho e no cotovelo a proteger as mangas do casaco.
Eu vivi nesse país e não gostei. E com tudo isto, só falei de
pobreza, não falei de ditadura. É que uma casa bem com a outra. A pobreza
generalizada e prolongada necessita de ditadura. Seja em África, seja na
América Latina dos anos 60 e 70 do século XX, seja na China, seja na Birmânia,
seja em Portugal.
Texto atribuido a Isabel do Carmo, médica, a circular na Net