Havia ali, para um lado, afastadas, as pilhas de madeira, rectangulares, com o poste erguido ao centro e um banco e no meio da praça um espaço reservado com o estrado e as tribunas.
Na da esquerda estava o rei, D. João III, piedosamente satisfeito na sua fé, com o espírito duro, mas sincero e forte; estavam a rainha e a corte e, ao lado do monarca, o condestável com o estoque desembainhado.
Na outra, da direita, levantavam-se o trono e dossel do cardeal D. Henrique, depois rei, e agora infante inquisidor-mor, ladeado pelos membros do tribunal sagrado, nos seus bancos.
A meio do tablado ficava o altar, com frontal preto, banqueta de seda amarela, e um crucifixo ao centro. Em frente, num plinto, erguia-se o estandarte da Inquisição. (...)
E os padecentes, em linhas, ficavam de pé, voltados para o altar, para o púlpito, para o tribunal.
Disse-se missa. O inquisidor-mor, de capa e mitra, apresentou ao rei os Evangelhos, para sobre eles jurar e defender a fé. D. João III e todos, de pé e descobertos, juraram com solenidade sincera. Depois houve sermão e finalmente a leitura das sentenças, começando pelos crimes menores.
A adoração das imagens, questão debatida nos concílios, dava lugar a muitas faltas.
Outros iam ali por terem recusado beijar os santos dos mealheiros, com que os irmãos andavam pelas ruas pedindo esmola.
Outros por irreverências, outros por falta de cumprimento dos preceitos canónicos; muitos por coisa nenhuma; a máxima parte, vítimas de delações pérfidas ou interessadas.
Os relatores iam lendo as sentenças, os condenados gemendo, uns, e outros chorando; outros exultando por se verem soltos do cárcere, livres da tortura, prometendo de si para consigo serem de futuro meticulosamente hipócritas. [...]
Oliveira Martins