sexta-feira, 29 de junho de 2012

O Que os Retratos Dizem.


Olho para o retrato pendurado na parede, sobranceiro à lareira; na primeira fila da foto, sentado, o meu avô materno, na sua pose de homem ribatejano com chapéu de aba direita e postura firme, tendo ao seu lado a minha avó Gertrudes, a doçura e humanidade personificada, junto da qual estou eu  num jeito de menino citadino de seis anos de idade ainda não muito habituado à vivência da província. Na fila de trás os meus tios mais novos que ainda não haviam saído da casa paterna para participar  nessa diáspora que levou milhões de portugueses, para outras paragens no país e estrangeiro, e que também  muitos alentejanos encetaram, nos anos sessenta, para fugir à ruralidade de um país onde o interior latifundiário sufocava e semi-escravizava. Hoje, uma grande parte dos que  partiram já regressaram aos seu locais de origem onde usufruem agora  de uma justa reforma onde o tempo é contado o mais devagar possível.

Olho para o retrato e faço uma breve retrospectiva da minha vida. As coisas boas e menos boas. Momentos felizes e menos felizes. Enfim todo um trajecto  em que alguns objectivos foram por  vezes diluídos  no imenso mar das circunstâncias da vida e outros foram ganhos a pulso e com esforço e em que a recompensa foi a alegria de atingir metas que julgávamos tantas vezes inacessíveis a pessoas que, como eu, nunca receberam nada de mão beijada da vida e em que tudo teve que ser conquistado com esforço, denodo e  sacrifício.  O meu percurso de vida tem sido marcado por dois elementos fundamentais: Jesus Cristo, com quem tive um encontro pessoal por volta dos meus quase 17 anos de idade e a família que construí e que está ao meu lado. Sem estes dois esteios fundamentais, a minha vida não teria sido certamente a mesma e, estou certo, não poderia ter sido vivida com o mesmo grau de satisfação, certeza e felicidade.

Gosto de pensar que o meu país, o território onde nasci, me  forneceu  apenas e só uma identidade nacional, da qual me orgulho, mais pela sua história e pela sua cultura do que por qualquer razão geográfica ou paixão indefectível. Sim sou português e, apesar de tudo, não trocaria essa identidade por outra que eventualmente não fosse além de mera  necessidade circunstancial, que no meu caso nunca se colocou. Mas enquanto português sinto que nasci numa pátria que trata desigualmente os seus filhos e isso convoca a minha tristeza e revolta e também por isso sou tão crítico e exigente com ela. Uma pátria, uma nação, um país, têm muito mais deveres e obrigações para com os que lhes pertencem do que aqueles que cumpriu comigo e com a esmagadora maioria dos meus concidadãos, e não só os  da minha geração. Mas pior ainda: um país não pode eximir-se a tratar com igualdade todos aqueles a quem pede iguais responsabilidades, e isso é o que tem acontecido ao longo do tempo que medeia entre a actualidade e o tempo que o retrato que tenho à minha frente, sobranceiro à lareira da minha sala, exibe. Sim, os retratos falam, traduzem histórias, vivências e realidades que,  para um simples observador, não se encontram visíveis. 

Não quero que os meus filhos vivam um país assim, que trata com criminosa desigualdade os seus cidadãos. É por isso que sou tão crítico em relação a Portugal, esta pátria que foi sempre mais madrasta do que mãe para a generalidade dos seus filhos e que, quase sempre, só tratou com redobrado desvelo aqueles que, mercê da sua linhagem ou da sua conta bancária, mais do que do seu esforço pessoal ou capacidade de realização, conseguiram manter-se perto da corte e dos palácios onde se joga um monopólio de poder discricionário. Esta é uma luta que travarei sempre ao longo da minha vida. Ao fazê-lo, quero contribuir para  construir uma nação que se preocupe mais do que com simplesmente fornecer uma identidade tantas vezes ofensivamente desigual. Tenho um desiderato:  mostrar às gerações que me sucederem que Portugal pode ficar bem no retrato. Para isso é  preciso um fotógrafo que não se limite a pedir um sorriso circunstancial para a câmara para que depois pareça que estava toda a gente bem e feliz. Se o fotógrafo não for bom profissional, é necessário que se mude. No futuro, o que conta não é apenas o retrato, mas o que ele traduz por detrás dos sorrisos.

Jacinto Lourenço