Deus é amor. Eis a declaração central para se entender o cristianismo. Amor não é atributo que torna Deus racionalmente compreensível. Em Jesus, Deus não se assemelha a um Júpiter que dita, e micro gere os nano detalhes do universo. Deus ama. Nesta afirmação alicerça-se a mensagem de que ele não deseja outro tipo de relacionamento com a sua criação.
Uma autêntica relacionalidade com Deus só será possível caso se aceite que ele criou pessoas com liberdade. A correlação amor e liberdade é estreita. Relacionamento verdadeiro só acontece quando aceitação e rejeição se tangenciam. Isto implica que mulheres e homens têm o poder de voltar as costas para a oferta de amor. Deus ama. Portanto, não se força – “eis que estou à porta e bato”.
Quando Deus interpela, homens e mulheres são capazes de responderem sim ou de frustrá-lo. Está escrito em Lucas 7.30 que os indivíduos possuem liberdade de dar as costas ao conselho ou propósito (grego, boulê) de Deus: “Mas os fariseus e os peritos da lei rejeitaram o propósito (boulê) de Deus para eles, não sendo batizados por João”.
Também está escrito em Lucas 13.34 que a vontade (grego, thelô) de Deus pode ser frustrada. O lamento de Jesus sobre Jerusalém é emblemático: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os teus filhos, como a galinha reúne os seus pintainhos debaixo das suas asas, mas tu não quiseste!”.
Deus não brinca, não dissimula, a sua liberdade é real. Não faz sentido imaginar uma divindade escondendo alguma agenda na manga ou induzindo as criaturas a sentirem-se livres sem que realmente o sejam. Homens e mulheres apenas cumpririam um roteiro previamente escrito e determinado. Aceitar que Deus mantenha actos secretos, nega a revelação de que ele seja luz; nele não há sombra ou suspeita. C.S. Lewis argumentou sobre a omnipotência divina em “O problema do Sofrimento” e concluiu:
A sua omnipotência significa poder fazer tudo o que é intrinsecamente possível, e não para fazer o que é intrinsecamente impossível. É possível atribuir-lhe milagres, mas não tolices. Isto não é um limite ao seu poder. Se disser: “Deus não pode dar a uma criatura o livre-arbítrio e, ao mesmo tempo, negar-lhe o livre arbítrio", não conseguiu dizer nada sobre Deus
O Deus bíblico cativa amorosamente os seres humanos e interpela-os para que se comprometam com a construção da história – que ainda não está pronta. O teólogo uruguaio Juan Luis Segundo dizia que “com infinita liberdade, Deus dá-se a si próprio os limites que supõe (para não ser contraditório) todo amor no trato interpessoal. E isso recorda-nos outra limitação, a suprema, realizada por Deus: a da Encarnação (cf. Fl, 2.7)”. Quando encarnou, Jesus não se fantasiou de humano, mas assumiu as limitações contingenciais comuns a todos.
Mesmo que alguns considerem absurdo, Deus corre, sim, riscos. A liberdade com que Ele soberanamente decidiu fundamentar as suas relações abre diques tanto das virtudes como dos vícios. Mesmo assim, a liberdade que pavimenta o chão de seus relacionamentos não significa que Deus não consiga, em sua infinita sabedoria, desencalacrar o universo das possíveis consequências do mal. Deus é capaz de mobilizar gente disposta a redesenhar a história, nem que seja a partir de tragédias.
Como não está sujeito a qualquer necessidade, nada o força a fazer qualquer coisa. As Escrituras não deixam dúvida: na sua liberdade, Deus decidiu não controlar tudo o que acontece. Mas a sua decisão foi coerente com o seu próprio ser. Porque Deus é amor, convoca homens e mulheres a que se tornem seus parceiros na condução da história. Este gesto é desdobramento de seu carácter. Deus jamais agrilhoaria a história; jamais colocaria cabrestos nos seus filhos. A partir da sua boa vontade e da sua liberdade, Ele criou e convocou os seus filhos para, em diálogo amoroso, entrar em parceria na construção do amanhã.
Espiritualidade só será verdadeira se aproximar as aparentes contradições da vida. Orar é acreditar que uma conversa genuína aconteceu. Houve uma sintonia entre a criatura e o Divino. Oram bem os que aceitam ser possível enlaçar e cooperar com Deus para, de alguma forma, alterar os eventos futuros – que não estão fixados.
O cristianismo não navega nas mesmas águas da religiosidade grega. Desde a metafísica aristotélica, a história era entendida como um destino inexorável. O pensamento helénico negava o valor e a consistência das parcerias entre Deus e a humanidade. Lamentavelmente, esse fatalismo ganhou força com a teologia da “Providência” que procura mostrar que Deus mantém a sua vontade num mundo contingencial. Na teologia iluminista, Deus passou a ser descrito com as mesmas atribuições que o “Motor Imóvel” de Aristóteles: um oleiro impassivo que zela pela sua própria glória, não admite questionamentos, e não tem escrúpulos em usar vidas humanas para conduzir a história ao seu fim majestoso.
Essa função atribuída a Deus, de organizar a ordem cósmica, tornou-se um absoluto inquestionável do cristianismo. Os teólogos passaram a afirmar, com absoluta certeza, que Deus, desde sempre, decretou cada mínimo detalhe do que acontece no universo e nas vidas humanas. Assim, tanto o bem como o mal só ocorrem por sua vontade. Auschwitz, tráfico internacional de crianças para pedofilia e Darfur são, em última análise "da sua vontade, pois, se Deus permitiu é porque tem algum propósito".
Juan Luis Segundo negou que esta divindade se pareça com o Deus bíblico: “O facto é que o Deus de Aristóteles e o Deus que, segundo João, é Amor, não são a mesma coisa. Se Deus é amor, é mister refazer o conceito da realidade divina".
Portanto, liberdade adquire maior importância para que a espiritualidade não seja alienante (Marx), infantilizante (Freud) ou desumanizante (Nietzsche).
José Comblin afirmou que “as formas da antiga cristandade estão se apagando. Com o desaparecimento da cultura rural, o cristianismo dos avós já pertence ao passado. Não adianta querer ressuscitar o passado nem querer contar com os movimentos de “entusiasmo” religioso para fundar uma nova cristandade... O evangelho é este: ‘Cristo nos libertou para que vivêssemos em liberdade’ (Gl 5.1).’Foi para a liberdade que vós fostes chamados (Gl 5.3). Deus é liberdade e criou-nos para a liberdade. Esta é a nossa vocação humana. O sentido da nossa vida é construir e conquistar a liberdade".
Soli Deo Gloria
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