E. Schillebeeckx fez parte de uma plêiade excepcional de teólogos - entre eles, M. D. Chenu, H. Urs von Balthasar, Yves Congar, Henri de Lubac, Karl Rahner, J. B. Metz, Hans Küng -, que ousaram pensar e que deram uma nova orientação ao cristianismo e à Igreja. Um dos problemas maiores da Igreja actual é que precisamente essa geração está a desaparecer e não tem substitutos à altura.
Acusado de pôr em perigo a ortodoxia, teve de enfrentar por três vezes a Congregação para a Doutrina da Fé - uma das vezes, porque defendeu que a comunidade poderia designar membros seus não ordenados para presidir à Eucaristia -, e denunciar os seus métodos inquisitoriais, constatando que a Igreja se ia desviando do Concílio e se tornava cada vez mais monolítica, confundindo unidade com uniformidade.
Foi-lhe atribuído o Prémio Erasmus, pois "os seus trabalhos vêm confirmar os valores clássicos da cultura europeia ao mesmo tempo que contribuem para o exame crítico desta cultura". Nunca perdeu a esperança na Igreja, comunidade de Deus, crítica e solidariamente presente e activa entre os homens e as mulheres deste mundo, entre os crentes, "que voltam as costas precisamente à Igreja estranha ao mundo, à Igreja do Concílio de Trento e dos tempos anteriores ao Concílio Vaticano II, Igreja triunfalista, juridicista e clerical, que pretende ser o intérprete irrefutável da vontade de Deus até ao mínimo pormenor". Numa das últimas entrevistas, concluiu: "Continuo optimista. Acredito em Deus e em Jesus Cristo. Que mais me pode faltar?"
O conceito de "experiências negativas de contraste" é certamente uma das chaves para o seu pensamento, pois formam uma experiência fundamental. É de facto nessas experiências que o homem aprende a distinção entre bem e mal e a urgência ética. O que vemos e ouvimos do mundo põe-nos em contacto com uma realidade que não está de modo nenhum em ordem - há algo que está radicalmente mal. Por isso, a experiência de sofrimento, de maldade, de injustiça e infelicidade é "fundamento e fonte" de uma indignação e de um "não" fundamental ao mundo tal como se apresenta. Ora, esta incapacidade de se resignar com o mundo tal como está revela uma "abertura" para uma outra situação, que constitui "apelo radical ao nosso sim", sim a um mundo outro, com sentido, justiça, felicidade. Este sim aberto, que é ainda mais forte do que o não, pois é ele que torna possível a resistência e indignação frente ao mal, é, num mundo ambíguo - mistura de bem e de mal, de sentido e sem sentido -, alimentado e solidificado por experiências fragmentárias, mas reais, de sentido e felicidade, convocando à solidariedade de todos para a construção de um mundo melhor, com rosto humano.
Aqueles que acreditam em Deus "preenchem religiosamente esta experiência fundamental", recebendo então o "sim aberto" mais orientação e horizonte, dados no vínculo entre ética e mística. Os cristãos, concretamente, a partir da revelação de Deus no homem Jesus, confessado como o Cristo e Filho de Deus, são transformados pela esperança fundada de que "no núcleo mais íntimo da realidade, está presente um suspiro da compaixão, da misericórdia; os crentes vêem aí o nome de Deus", cuja causa é a causa dos homens, o seu bem-estar e felicidade.
A fé num "Deus dos homens" que quer chamar todos à plenitude da vida implica, por um lado, que é preciso acreditar no homem, pois não há salvação que não passe pela libertação, também sócio-política, mas, por outro, não se pode cair numa fé iluminista ingénua no progresso nem num messianismo político, pois "nenhum progresso sócio-político reconciliará alguma vez com a injustiça que coube aos mortos".
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Prof. Anselmo Borges *** In Diário de Notícias de 09 de Janeiro de 2010