Soli Deo Gloria
domingo, 12 de julho de 2009
Ícones da Ortodoxia
Leio História do medo no Ocidente, de Jean Delumeau (Companhia de Bolso). Vou devagar, o volume de informações excede meu hardware. Mas já aprendi sobre o pavor que o mar impingia aos antigos navegadores, que acreditavam em leviatãs, sereias e polvos gigantes. Antes de partir, muitos sacrificavam animais para não serem tragados, caso ultrapassassem as linhas imaginárias do medo. O Cabo do Bojador, na costa ocidental da África, era considerado o fim do mundo. Dizia-se que os ousados nunca voltavam.
Delumeau afirma que “os elementos desencadeados – tempestade ou dilúvio – evocavam para os homens de outrora o retorno ao caos primitivo. Deus, no segundo dia da criação, separara ‘as águas que estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento’ (Gênesis 1:7). Se, com a permissão divina, está claro, elas transbordam novamento os limites que lhes haviam sido designados, o caos se reconstitui” (pag. 62).
Delumeau relata como se desenvolveu o medo de bruxas, feiticeiros e magos que acabaram na fogueira inquisitorial. O historiador francês afirma ainda que alguns ícones da ortodoxia, geralmente invocados para sustentar argumentos conservadores, respiravam o mesmo ar supersticioso de seus dias.
Santo Agostinho acreditava em astrologia. Empenhava-se, inclusive, em distinguir a lícita da ilícita. Suas Confissões (V, cap. 1º) admitem que as estrelas podem ser os “sinais anunciadores dos acontecimentos, mas elas não os rematam”. Pois, “se os homens agem sob a coerção celeste, que lugar resta ao juízo de Deus, que é mestre dos astros e dos homens?”.O que Delumeau diz de Lutero, que tem a reputação de ser implacável contra a crendice popular?
Anunciando a um correspondente a morte do príncipe-eleitor de Saxe (em maio de 1525), Lutero esclareceu: "O sinal de sua morte foi um arco-íris que vimos, Philippe [Melanchthon] e eu, à noite, no último inverno, acima da Lochau, e também uma criança nascida aqui em Wittenberg sem cabeça, e ainda uma outra com os pés ao contrário" (pag.110)
Eis o que afirma sobre o venerado Calvino:
Ele opõe então a astrologia “natural”, fundada “na conformidade entre as estrelas e planetas e a disposição dos corpos humanos”, “à astrologia bastarda”, que procura adivinhar o que deve acontecer aos homens e “quando e como eles devem morrer” (pag. 108).
Advirto, portanto, os austeros defensores da mais reta doutrina: cuidado quando precisarem alicerçar suas afirmações dogmáticas citando a verdade de Agostinho, Lutero e Calvino. Eles, iguais a nós, eram humanos. E também falaram tolices.