Deus, atrevo-me a chamar-te ao mesmo tempo de Pai e de Mãe. Antes, confesso: minha relação contigo continua inadequada. Sou inepto em lidar com o sagrado. Sei tão pouco sobre o mundo espiritual. Não alcanço como o universo cabe na concha de tua mão. Não sei explicar que antes da explosão primordial que moveu o relógio cósmico, tu já eras. Não compreendo o significado desde sempre.
Não posso tratar-te como um fundamento, isso te coisificaria; recuso tentar encapsular-te em definições, isso te reduziria a um ídolo. Pretender definir-te é arrogância. Equivale à ousadia de fazer-te menor que a racionalidade humana. Contemplo-te com a mesma admiração do astrónomo que vasculha o espaço sideral em busca de nebulosas e de buracos negros. Meu coração se enche de “porquês?” infantis. Assombrado, reconheço: não passo de um cisco, uma fuligem que o vento espalha.
Quando falo contigo fico em suspensão. Insisto em orar porque pela fé acredito que, de alguma forma, tu me ouves. Embora pareça muito improvável, sinto-me bem-vindo. Desde que me ajoelhei na adolescência e sozinho prometi te seguir, achei-me; mas também, perdi-me.
Estranho dizer-te que me encontrei. Na verdade, continuo desconhecido de mim mesmo. Ego e superego não se entendem em minha cabeça. Muitas vezes o meu ego se desestrutura com o assédio implacável de um superego forte. Acovardo-me com as travas da moralidade burguesa que me formou; sofro com as patrulhas ideológicas de meus pares; hesito diante dos exílios sociais. Quando sonho, meu inconsciente arma palcos malucos. Dormindo, assassinei, ajudei necessitados, traí meus filhos, espezinhei amigos. Sei tão pouco sobre minha interioridade.
Mas devo a ti algumas descobertas que me enchem de alegria. Acordei para a verdade de que tenho uma alma feminina. Eu defendia a masculinidade como um Titã. Estudava a tua Palavra sem criticar a cultura patriarcal que super valoriza o macho e discrimina a mulher. Um dia senti que me chamavas de “menina dos olhos de Deus”; naquele dia, despi-me do orgulho estúpido de ter nascido com um falo.
Passei a inspirar-me nas personagens que conseguiram furar o cerco preconceituoso do mundo antigo, dominado pelos homens. Agora, quero aprender com as mulheres a ser doce, corajoso, transgressivo, perspicaz. Quero o espírito transgressivo de Sara, Rebeca, das parteiras que pouparam a vida de Moisés e Raabe; quero a sagacidade de Tamar, Abigail, Rute e Ester. Mas, minha alma feminina deseja inspirar-se principalmente em tua mãe, Maria.
Através de seu exemplo, aprendo disponibilidade. Diferente dela, respondo aos teus apelos com um não posso. Mas Maria não vacilou em dizer: “Cumpra-se em mim”. Adio, postergo, faço-me de rogado, mas Maria nunca hesitou; preciso imitá-la. O exemplo de Maria pode preservar-me da infidelidade. Paro diante da Pietá, que chora o filho morto no colo e reajo: “Meu Deus, que cena comovente”, mas fico por aí. Maria, contudo, do primeiro ao último dia do seu Filho, se manteve presente.
Semelhante à tua mãe, almejo ser achado leal. Peço-te ouvir no último dia: “Bem feito, servo bom e fiel”. Isso, para mim, será céu. Amém.
Soli Deo Gloria