quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Protegemos o que Amamos

"Nós protegemos o que amamos”, declarou recentemente o filho de Jacques Cousteau. Se alguém não cuida, é porque não ama. Ou seja, descuidar a natureza e a si mesmo é a evidência não apenas de desnaturação, mas também de falta de amor à vida e a si próprio. Por exemplo, quem sorve constantemente as 4.720 substâncias contidas no cigarro, muitas delas cancerígenas, maltratando assim sua “casa corporal”, (1ªCor.12:22) dificilmente será consistente na defesa da “casa comum”, até porque não se importa com os fumadores passivos ao seu redor nem com a condição de semiescravidão dos fumicultores. Quem se conforma com a “dose diária inaceitável” de agrotóxicos no leite materno e nos alimentos em geral não se interessará em desmascarar o agronegócio como insustentável em termos ambientais (devastação), sociais (trabalho escravo) e económicos (rendição ao sistema bancário e às multinacionais controladoras das sementes e da maléfica transgenia). Logo, a tolerância com as pequenas incoerências pessoais é uma das causas da pouca eficácia do cuidado pela natureza no nosso sistema de crescimento económico. Pois, contraditoriamente, ninguém se opõe à preservação ambiental. Afinal, trata-se de um empreendimento ganha-ganha para todos, hoje e no futuro. Contudo, que a promovam os outros e que ela não tolha o nosso modo de vida e modo de produção. Diante do muito que está a ser feito e dos poucos avanços na preservação ambiental, Jean-Michel Cousteau acrescenta que, quando olha para uma criança, alvo do amor humano e carente de protecção, consegue vencer o desânimo e renovar o compromisso de lutar pela preservação do planeta. Essa motivação “secular” é desenhada de duas maneiras nos textos bíblicos. A primeira, mais conhecida, é a afirmação de que devemos preservar a criação de Deus porque somos parte dela e incumbidos do seu cuidado: ser criado à imagem e semelhança de Deus (Gn. 1:26) significa ser o estandarte do domínio de Deus sobre a terra, representando, anunciando e executando a vontade benfeitora dEle. Ao Senhor Deus pertencem o mundo e tudo o que nele existe, inclusive os seus habitantes (Sl. 24:1). Além disso, a informação de que Deus considerou muito boa toda a sua criação (Gn. 1:31) faz lembrar que, na concepção hebraica, “bom” é o que está ligado a Deus, ainda que seja “imperfeito”, ao passo que a concepção grega da “perfeição” do cosmos nos leva à crise diante das deficiências físicas. Qualquer ser humano, por mais falho que seja, pode ser útil na mão de Deus. Embora toda a criação esteja gemendo, e nós com ela, o Espírito de Deus geme com ela e connosco (Rm. 8:22-26). Não é bom estar separado de Deus nesta empreitada de cultivar e preservar. A segunda base, menos lembrada, do empenho em favor da preservação, não vem da teologia da criação, mas da experiência da libertação. É a única que transmite a realidade do amor, sempre nas três vias: amor de Deus ao ser humano e à criação, amor do ser humano a Deus, e amor do ser humano ao semelhante e à natureza. Trata-se da interpelação directa de Deus que intervém na história, transformando a criatura humana em sua parceira de diálogo e acção, e revestindo-a de uma dignidade inaudita (cf. Sl 8.4ss). “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te arranquei do contexto da escravidão” (Ex. 20:1). É esse amor divino aos e nos humanos que estremece diante de abusos contra seres humanos indefesos como as crianças, que se compadece da frágil biodiversidade e que se deslumbra com a tenacidade da vida. Que lamenta perplexa e criticamente a mercantilização dos patrimónios universais da humanidade: “Nossa água, por dinheiro a bebemos, por preço vem a nossa lenha” (Lam. 5:4). E que levanta a voz, defendendo os direitos humanos, quando escravos libertos submetem outros à corveia: edificar um templo a esse Deus libertador mediante trabalhos forçados? (cf. 1ºRs. 9:15). A intensidade da experiência de Deus na história é indutora da crítica social: Quem vê apenas o problema e não o sistema, não vê o problema. E é indutora da luta em favor de soluções socio-ambientais dignas e consistentes: Não se resolve a questão ambiental à custa da social, nem a social à custa da ambiental. O social e o ambiental estão interligados. Quem não respeita a terra e o ser humano sobre a terra tão pouco respeita o meio ambiente. Assim, desumaniza-se a si próprio. Portanto, cuidemos do jardim por causa de nós mesmos, da nossa coerência connosco mesmos e com nossa posição de interlocutores amados de Deus (Gn. 2:15). A resposta humana a esse amor divino é louvor e reconhecimento: Sim, “os céus são os céus do Senhor, mas a terra, deu-a Ele aos filhos dos homens” (Sl.115:16). É também ser pró-activo, articulando e difundindo modos de vida e de produção com tecnologias sociais e ambientais que respeitem o meio ambiente e a abundância de vida que ela nos propicia, a exemplo da agroecologia, das cisternas no semiárido, dos projectos comunitários de economia solidária. Porém, essa resposta é sobretudo defender os empobrecidos e fragilizados, em consonância com o agir de Jesus. Porque esmagar a cana quebrada e torcer o pavio que fumega não é somente desumano, mas primordialmente antidivino ( Is. 42:3; Mt.12:20).
Werner Fuchs*
* Werner Fuchs é pastor da IECLB, tradutor e coordenador do projeto Mini-Fábricas Comunitárias de Óleo Vegetal, da Rede Evangélica Paranaense de Assistência Social (REPAS).