Você pode interpretar a história de Adão e Eva como uma descrição de como as coisas aconteceram. Mas pode também interpretar como uma descrição de como as coisas acontecem. Pode ser uma história que conta como as coisas foram, ou como as coisas são. Pessoalmente, opto pela segunda alternativa.
Não me interesso tanto em saber se as coisas foram daquele jeito ou não, não estou preocupado com a literalidade da narrativa, que, aliás, me traz mais embaraços que esclarecimentos: houve mesmo um bonequinho de barro? Antes de enganar o casal a serpente andava erecta? Que fruta era aquela da árvore do conhecimento do bem e do mal, será que está sendo vendida na feira sem que a gente saiba que é ela? Quais as coordenadas do jardim do Éden? Será que os anjos com espadas de fogo ainda estão por lá?
A história de Adão e Eva visa a comunicar a óptica judaico-cristã da natureza humana, da relação entre Deus e o homem, da dinâmica da sociedade humana. O autor bíblico não está preocupado em descrever o processo mecânico natural da criação. Seu texto não tem pretensão das ciências duras, que tratam das engrenagens do universo natural através da física, por exemplo, mas das ciências do espírito, que têm por objecto a complexidade do humano e suas relações.
Adão e Eva somos nós. Os que pretendemos definir o bem e o mal, o certo e errado, ambiciosos da autonomia auto-suficiente cuja finalidade não é outra senão a satisfação das nossas vontades e desejos sem fim. Todos os que optamos pela competição em detrimento da cooperação, a violência em lugar do diálogo, o olho por olho contra o perdão, o império do mais forte em vez da gratuidade, as relações de interesses egocêntricos, escusos e difusos em troca da gratuidade e da partilha abnegada, a conquista pela força bruta às expensas da paz.
Adão e Eva somos nós. Construtores de jardins de pedra e ferro, edificadores de comunidades muradas, empreendedores prepotentes, espoliadores da riqueza e da beleza dos bichos, do verde, das águas – extrativistas predadores.
Todos quantos nos dedicamos à busca do prazer a qualquer preço, que nos contentamos com o máximo de felicidade pessoal em termos de conforto e satisfação individuais, presos nas garras da sensualidade-sensorialidade, pés fincados na terra, carne agarrada à carne, a orgia pluri-glutônica viciante e viciada-anestesiada. Adão e Eva somos nós. Fugitivos da realidade, fantasiosos, vítimas do pensamento mágico, iludidos pela possibilidade da reedição do paraíso perdido sem o concurso do divino.
Adão e Eva somos nós. Também damos ouvidos à serpente. Também matamos irmãos. Também nos abandonamos ao hedonismo desvairado. Também queremos apenas nosso nome pronunciado com reverência.
Adão e Eva somos nós. E somos também Caim, somos o povo ao redor de Noé, os empreiteiros da torre de babel. Mas somos também a descendência do filho da mulher, que esmaga a cabeça da serpente. Somos também Abraão. Sobre nós repousa um chamado sagrado: fazer benditas todas as famílias da terra.
Génesis não é um veredicto. Génesis é uma profecia: aponta a injustiça e o juízo, convoca ao arrependimento, suscita a esperança e promete a vitória dAquele cuja vontade é boa, perfeita e agradável: novo céu e nova terra.
Ed René Kivitz
Via Laion Monteiro