Descubro aos 39 que uma história são muitas e que a narrativa reivindica ser recontada sempre e nunca em definitivo. Como se o modo com o qual vínhamos contando quem somos, no que cremos ou não mais, o que esperamos e do que desistimos, porque chegamos aqui, não conseguisse mais nos narrar. Entediados com os contos de nossa história, angustiados pela desconfiança de que um outro era uma vez precise ser arriscado, redescrevemo-nos.
Não consigo contar a minha história como vinha contando. Minha filha me perguntou em um dia desses: por que você é assim, diferente? Engasguei nas primeiras sílabas da história que sempre narrei para dizer quem sou. Não era mais. Não contava mais. Instantes novos, pessoas distintas, perguntas outrora adiadas, respostas blasfemas, fantasmas desvelados mudaram quem venho sendo desde o era uma vez. Não falo de capítulos novos de uma novela antiga. Mas de fatos novos que recontam a história toda. Uma narrativa é uma verdade que nunca chega, uma identidade sempre a caminho.
Talvez por isso Jesus nada tenha escrito. A palavra escrita finge que disse o que nunca deixará de ser. Talvez por isso, a única vez em que escreveu o fez na areia. Para que a brisa, essa velha contingência, tratasse de desescrever. Foi a escrita fugidia na areia que obrigou os contadores de uma história só, a que junta pedras nas mãos, a recontarem-se. Quem não tiver pecado que conte uma única história. À mulher, que repetia pela última vez a história de sempre, impôs a tarefa de olhar-se de novo e narrar-se de novo e tentar ser de novo: onde estão as pedras, memórias mortas de quem é você? Restou o vácuo criativo das versões que se foram. Eu também não sei mais quem é você. Vá e conte de novo. Era uma vez uma mulher que queria amar.
Engasgado nas primeiras sílabas da história que sempre contei, mas que não me conta mais, perguntei, curioso, como se quisesse saber como de fato foi: o que você acha? Seu olhar irônico de filha que estranha o pai, sobrancelhas franzidas, maneando a cabeça, era Jesus sugerindo-me redescrever. Esse que vou deixando de ser.
Por Elienai Cabral Junior
Via Blogue de Laion Monteiro