Há em Florença uma velha e respeitada fábrica artesanal, fundada em 1496, cujo produto é uma tinta azul-esverdeada usada exclusivamente na impressão de livros (as matérias-primas são fuligem, alcatrão, água do mar, corante de calamar e púrpura, cascas de cigarra, manjericão e aglutinante de figo). No seu mais antigo manual está escrito (escândalo calculado para atingir determinada estirpe de puristas) que a tinta é artigo mais espiritual, e portanto de maior valor, do que o papel. O papel, observaram os fundadores, é sempre mudo, prosaico, parvo e passivo – em contraste com a tinta, que é fluente, alada, articulada e positiva. É o sopro da tinta que anima o papel, e nunca o contrário.
O perímetro da fábrica é ligado ao pátio central por diversas galerias, e ao longo de cada galeria há três portões de ferro: um no meio e dois em cada extremidade. Em lugar de barras ou ornamentos, a gradaria de cada portão consiste numa citação latina ou inglesa escrita em letras finas e serifadas de ferro, sendo que as palavras, em diversos pesos e tamanhos, descem e sobem formando arcos da mais requintada manufactura. Quem se aproxima dos portões vê portanto palavras através de palavras através de palavras, e cada portão altera, à medida que se abre ou fecha, o sentido do seguinte.
Na fábrica em si, não se imprimem livros, mas numa velha prensa manual reproduzem-se ainda, a partir de uma matriz ancestral, pequenas cartilhas destinadas a ensinar às crianças os perigos da leitura. Ilustrações a traço primitivo, de feitio medieval, mostram crianças a arder, caindo em abismos, sendo comidas por canibais e arrastadas para o inferno pelo crime de terem aberto e vislumbrado o conteúdo dos livros anónimos que carregam nas suas mãozinhas.
Na fachada da fábrica, bem como na epígrafe da cartilha, espreita a frase “Um livro é um homem fingindo-se de morto.”
Via Bacia das almas