A humanidade conviveu e tem convivido com regimes não-democráticos: monarquias absolutas, teocracias, ditaduras, aristocracias, oligarquias, que privilegiam famílias, etnias, religiões, partidos ou classes. Com a substituição do poder personalizado pelo poder institucionalizado. Surgiram os Estados Nacionais, as constituições e a democracia, como “o povo politicamente organizado”. Na maioria das vezes, o formalismo democrático e a liturgia das eleições apenas legitimam grupos, que controlam os aparelhos do Estado. Ao povo cabe apenas escolher periodicamente, entre os escolhidos, os seus senhores. Presencia-se no Ocidente, sob a fachada da democracia, uma nova autocracia: a dos ateus e agnósticos e materialistas secularistas -- netos do Iluminismo -- contra a maioria religiosa dos cidadãos. Essa ideologia aparece mais nítida com o término da Guerra Fria, e pretende confundir Estado laico com Estado secularista. Por Estado laico entende-se aquele legalmente separado das igrejas, sem religião oficial, com a igualdade perante a lei, que se constitui um avanço para a civilização, e que foi uma das bandeiras do protestantismo histórico no Brasil. O Estado secularista expressa uma ideologia militante de rejeição da religião, da sua negação como facto social, cultural e histórico, ou considerando-a intrinsecamente negativa. No passado, tivemos a influência da filosofia positivista que, com sua “lei dos três estados”, advogava a marcha inexorável da história de uma etapa religiosa inferior para uma etapa superior, pretensamente científica ou positiva. Essa filosofia marcou grande parte das ideologias contemporâneas, inclusive o marxismo, cujos regimes, oficialmente ateus, procuravam “colaborar” com esse processo histórico perseguindo implacavelmente a religião e tornando compulsivo o ensino do ateísmo. O que essa elite iluminada tem dificuldade em aceitar é o facto de que, no século 21, a religião, em vez de diminuir, está a aumentar, no que Giles Kepel denomina “a revanche de Deus”, e que dá o título do novo “best-seller” de John Micklethwait e Adrian Wooldridge, “Deus Está de Volta”. Há todo um malabarismo intelectual para “explicar” esta anomalia, e, por outro lado, procura-se promover um combate sistemático para a conter. O antireligiosismo teve como epicentro a Europa Ocidental, estendeu-se para a América do Norte, e espalha-se pela periferia do sistema mundial, chegando até nós. Há uma prioridade em se atacar as religiões monoteístas de revelação, porque julgam que o monoteísmo promove a intolerância e a revelação traz conceitos e preceitos autoritários retrógrados (o pecado, por exemplo) que se chocam com as visões tidas como superiores da autonomia das criaturas. Mais particularmente, esse ataque centra-se contra o cristianismo. A intolerância para com a religião implica impossibilitar a sua expressão nos espaços públicos ou que os seus seguidores ajam publicamente por motivações religiosas. A religião, para os seus adversários secularistas, deveria apenas ficar confinada às quatro paredes dos templos e dos lares, à subjectividade de cada um, condenada à irrelevância. Essa elite sente-se iluminada, superior, com o papel histórico de proteger as pessoas delas mesmas, de corrigir os seus “atrasos” e de “educar” a humanidade, seja pelo apropriação dos aparelhos ideológicos do Estado (educação, media), seja pelo uso do aparelho coercivo do Estado (leis, justiça, polícia). Na esteira desse movimento temos tido a chatice do “politicamente correto” (moralismo de esquerda), a luta por retirar símbolos religiosos dos espaços públicos, acabar com os dias santificados, proibir a saudação “Feliz Natal” (deve-se apenas desejar “Boas Festas”), e a defesa de bandeiras como a libertação sexual, o aborto (no lugar do direito à vida, o direito da mulher a dispor do “seu” corpo), a eutanásia e a licitude das “orientações sexuais” -- a chamada agenda GLSTB (gays, lésbicas, simpatizantes, transgéneros e bissexuais). Por sua mobilização política (e não por “descobertas científicas”) promoveu-se a retirada dessa anomalia do rol das enfermidades e dos ilícitos -- e se instituir o casamento homossexual -- e parte-se para proibir os que querem deixá-la, cassar o registo de psicoterapeutas, forçar a maioria a mudar os seus padrões morais e criminalizar os que não aderirem. Enquanto a Europa e a América do Norte já evidenciam um novo ciclo de perseguição religiosa, corre no Congresso Nacional [Brasil] um projecto de lei que faria com que o autor deste artigo fosse condenado a até cinco anos de prisão por escrevê-lo. Enquanto a minoria materialista tenta forçar uma ateucracia e a minoria homossexual tenta fomentar uma heterofobia -- ódio aos que insistem no seu direito de afirmar a normatividade da heterossexualidade, e de não aceitar a normalidade do homoerotismo -- eles recebem o apoio (cavalo de troia) de outra minoria: o liberalismo teológico. A nós, a maioria, cabe, democraticamente, o direito à resistência!
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Robinson Cavalcanti
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Via Revista Ultimato