Em menos de 90 anos (entre 1456 e 1543), foram feitas descobertas notáveis e surpreendentes que abriram novos horizontes e transformaram o mundo. O gráfico alemão João Gutemberg descobriu caracteres tipográficos móveis que deram origem à imprensa (1456). O navegador genovês Cristóvão Colombo descobriu o vasto continente americano, habitado de norte a sul e de leste a oeste (1492). O navegador e explorador português Vasco da Gama descobriu a tão desejada rota marítima para as Índias (1497). O militar e navegador português Pedro Álvares Cabral descobriu a parte mais meridional do continente encontrado menos de oito anos antes por Colombo (1500). E o astrónomo polaco Nicolau Copérnico descobriu que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário, como se pensava desde Ptolomeu, 1.400 anos antes (1543).
No meio dessas descobertas, que mudaram de uma hora para outra concepções conservadoras e tímidas, há mais uma, a que causou impacto maior e mais prolongado, com repercussões que duram até hoje. Trata-se da descoberta, ou melhor, da redescoberta da Graça de Deus pelo monge alemão Martinho Lutero.
Para redescobrir a Graça, o “javali da floresta”, como o chamou o papa Leão X, teve de fazer outras redescobertas, a princípio, desconcertantes e, mais tarde, alvissareiras. Lutero percebeu a miséria humana: “Nós somos mendigos, essa é a verdade”. Tal revolucionária e difícil redescoberta levou-o a outra: “Cheguei, de facto, à firme conclusão de que ninguém é capaz de justificar-se pelas suas obras [e] que é preciso recorrer à graça divina, que pode ser obtida por meio da fé em Jesus Cristo”. A partir dessas duas redescobertas preliminares, ele chegou logo à graça, que é o amor de Deus activo em benefício da salvação do homem.
Depois da descoberta pessoal da Graça, Lutero viu-se na obrigação de a tornar conhecida dos outros miseráveis “mendigos”. Ele entendeu que a sua tarefa, a partir de então, seria trazer à luz o que estava e está encoberto e obscurecido: as boas notícias de que nos “nasceu um Salvador, que é Cristo, o Senhor” (Lc 2.11). É por isso que ele se apresentava como “Doutor Martinho Lutero, indigno evangelista de nosso Senhor Jesus”.
Ao contrário do que muitos ainda pensam, o alvo de Lutero era proclamar o evangelho, não reformar a Igreja. O resto todo, inclusive a Reforma, foi consequência. Os pesquisadores católicos Erwin Iserloh e Harding Meyer registam no livro «Lutero e Luteranismo Hoje»: “Em sua maneira aguda de falar, [Lutero] chega a expressar-se ocasionalmente assim: o facto de o papa viver em concubinato não tem importância; mas é insuportável que não pregue o evangelho, que até o escamoteie”. Outro reformador, Guilherme Farel, de Genebra, pensava como Lutero ao censurar o sacerdote católico “não pela sua má vida, mas pela sua má crença”.
Para Lutero, “o evangelho é, e não pode ser outra coisa senão uma prédica de Cristo, filho de Deus e de Davi; verdadeiro Deus e [verdadeiro] homem, que superou, para nós, com a sua morte e ressurreição, o pecado, a morte e o inferno de todos os homens que nele crêem”.
O cristocentrismo de Lutero — expresso nas famosas frases latinas solus Christus (só Cristo e nada mais), sola gratia (só a graça e nada mais) e sola fide (só a fé e nada mais) — é tal que ele insiste: “Somente Jesus, filho de Deus — repito, somente Jesus, filho de Deus — nos redimiu dos pecados”.
Por causa dessa fantástica descoberta da Graça, Lutero é chamado de “pai na fé” na monografia, cheia de calor humano, preparada pelo historiador católico Peter Manns, publicada em 1982. Ou de “doutor comum”, como sugeriu, em 1970, o cardeal J. Willebrands, presidente do Secretariado para a Unidade dos Cristãos, por ocasião da quinta Assembléia da Federação Luterana Mundial, realizada em Evian, em 1970.
Apesar da extraordinária contribuição de Lutero, o “indigno evangelista” é muito pouco conhecido. A única coisa que todo o mundo sabe a seu respeito — a solene e corajosa afixação das 95 teses à porta da igreja de Wittenberg em 31 de outubro de 1517 — de facto não aconteceu, segundo pesquisas confiáveis e recentes, iniciadas por um historiador católico. Nesse dia muito querido pelos protestantes, a ponto de ser chamado “Dia da Reforma”, Lutero apenas enviou as teses ao seu bispo diocesano Jerónimo Schulz, de Brandemburgo.
Os Protestantes sentem-se na obrigação de admirar aquele que reformou a Igreja. Os Católicos romanos sentem-se na obrigação de questionar aquele que provocou o segundo Grande Cisma da Igreja. Mas a maioria destes grupos desconhece a vida e a obra de Martinho Lutero, nascido e morto em Eisleben, na Alemanha. Para uns, Lutero é mesmo o “javali da floresta” que devasta a vinha do Senhor (Sl 80.13); para outros, é o herói que enfrentou o todo poderoso papa Leão X.
Porque ainda existe a tentação de deixarmos Jesus Cristo de fora da Igreja, das homilias, das teses, dos livros, da televisão, da internet e da história (e essa tentação não deixará de acontecer nos séculos vindouros), precisamos ressuscitar a ênfase cristocêntrica de Lutero, expressa magistralmente na 62a tese: O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo evangelho da glória e da graça de Deus. Esse seria o laço de aproximação mais razoável, necessário e urgente, e o único que evitaria o vexame pelo qual passou o pastor da Igreja em Laodicéia, que se dizia cristã sem a efectiva presença de Cristo (Ap 3.20).
O pastor luterano brasileiro Walter Altmann diz, no seu livro «Lutero e Libertação», que “Lutero ainda continua muito vivo e presente”. É verdade, pois das pregações de Lutero em Wittenberg e outras cidades, o fabuloso número de 2.082 chegaram até nós. Some-se a isso cerca de 750 escritos da sua autoria, que estão sendo traduzidos para o português e publicados no Brasil pela Comissão Interluterana de Literatura (já foram publicados nove dos quinze volumes previstos). A cada ano surgem mais de mil títulos sobre Lutero, sem contar os textos em livros escolares e os verbetes não assinados em diccionários. De tempos em tempos, reúne-se num lugar do mundo o Congresso Internacional de Pesquisa sobre Lutero, cada vez com número maior de participantes. Não é de surpreender o crescente e positivo envolvimento de pesquisadores, historiadores e teólogos católicos, como Joseph Lortz, Erwin Iserloh, Yves Congar e Hans Küng. Lortz faz um apelo muito oportuno: “[Somos chamados] a trazer para a Igreja Católica as riquezas de Lutero”. Se as “riquezas de Lutero” são a sua contribuição para a cristologia e o cristocentrismo, a obrigação de reviver o “javali da floresta” é não só de católicos romanos, mas de toda a cristandade, incluindo os cristãos orientais e os protestantes.
Sabe-se que até há bem pouco tempo, só a menção do nome de Lutero, no meio católico romano, causava arrepios, até certo ponto compreensíveis, pois tudo o que se sabia dele era baseado no livro Commentaria de Actis et Scripts Martini Lutheri (Comentário Acerca dos Actos e dos Escritos de Martinho Lutero), escrito em 1549, três anos depois da morte de Lutero, por João Debeneck Cochlaeus, sacerdote e humanista, e cónego da Catedral de Breslau. Para Cochlaeus, Lutero era a encarnação do demónio (veja no apêndice “O Filho do Diabo”, p. 265).
Conversas com Lutero é uma sincera contribuição e um esforço mais sincero ainda para encorajar os “mendigos” de hoje a descobrirem ou redescobrirem a Graça de Deus!
Via Solomon