Tenho tudo para viver uma vida minimamente despreocupada. Vivo como um legítimo burguês, migrante nordestino relativamente bem sucedido na cidade grande. Adquiri hábitos de classe média. Sou bi-língue. Escrevi e publiquei alguns livros, comunico-me em uma rádio para milhares de pessoas. Estou na internet. Gosto de vinho tinto seco, de Bach, de poesia latino-americana, de colóquios filosóficos. Eu não deveria ter desassossego algum; não se permite a uma personagem admitir inquietações existenciais. Espera-se que um homem semi-público mantenha-se otimista, transbordante de esperança; principalmente, líder de uma igreja.
Dúvidas doutrinárias? Em hipótese alguma. Os crentes são inamovíveis e, bem alicerçados em textos bíblicos, não entristecem jamais! Por que eu, então, pastor de uma comunidade de probos cristãos, começo a segunda-feira com esse enfarto emocional? Que colesterol entupiu as veias da minha alma para me deixar assim, sem fôlego?
À semelhança de Fernando Pessoa noto que “meu passado foi só a vida mentida/de um futuro Imaginado!”. A eterna competição, que me empurrava para frente, transformou-me no guerreiro que nunca desejei. As guaritas, as rondas noturnas, a constante prontidão militar, deram-me desprezo pela guerra. Odeio arenas, ringues, dos peões ao rei do xadrez, carteados, ping-pong. Trato o imperativo de vencer como um vampiro, que suga meu sangue venoso. Jogo a toalha, simplesmente. Desisto de dar certo ou estar certo. Já não me importo em ser desmentido, não faço questão que chancelaria alguma me aprove e aponte o polegar para cima.
Abatido, perco o medo de despencar. Disforme como um poliedro mal arquitetado desço a ladeira dos anos, aos solavancos. Palcos bem iluminados não me seduzem. Indiferente aos reclames tradicionais, desprezo os paradigmas canônicos. Quero ficar só.
Em minha tristeza, lacro os cadeados do espírito. Amanheço da madrugada escura sem rasgos onipotentes. Não tenho raiva da insónia. Transformo minha prece em solilóquio. Recuso a visita do sol. Desligo todas as tomadas do quarto; não quero conselho. Penduro a placa de “não perturbe” no trinco da porta. Parto para correr sozinho, enquanto duplico os quilómetros. E se alguém vier com platitude, peço deseducado: Por favor, me deixe em paz.
Soli Deo Gloria
Via Ricardo Gondim