“Bem aventurado aquele que lê e os que ouvem as palavras desta profecia, e guardam as coisas que nela estão escritas, porque o tempo está próximo” Apoc. 1:3
Lembro-me do meu avô José, homem de excessos contidos, conhecedor dos tempos e das suas nuances, sustentáculos de uma vida de agricultor que o envelheceu precocemente . Sabia ler os céus e os astros que o povoavam, as nuvens, os ventos, as amplitudes das temperaturas, os rigores e os estios. Depois preparava a terra, aproveitava os aluviões e lançava as sementes que seriam o pão sobre a mesa da família. A informação prática, ou empírica, se quisermos dizer de forma mais subtil, que lhe adensava o vasto dicionário da sabedoria herdada de antanho, era fundamental para a sua sobrevivência e dos seus, entre os quais eu me contabilizei em criança. Dela dependia tudo, até os parcos rendimentos amealhados para as situações mais prementes que pudessem vir a espraiar-se numa qualquer maré menos favorável dos refluxos da vida. Conhecia os tempos e isso era determinante. Não sabia ler nem escrever. Escola era um luxo que a pobreza vivida nos seus verdes anos de infante não contemplava. Só lhe ensinaram aquilo que era fundamental para existir no mundo difícil que lhe deixaram. Não enjeitou a herança; sofreu-a como qualquer homem ou mulher da sua geração a quem o trabalho curtiu a vida e a tez, lendo, permanentemente, no céu e na terra, os sinais dos tempos que via passar.
O verso de Apocalipse que encima este texto dá-nos três pistas importantes sobre o que fazer em relação ao tempo. Na actualidade não temos uma tradição de transmissão oral dos conhecimentos, como era prática, aliás, na geração do meu avô José. Semelhantemente, e em linha com a geração do meu avô, Apocalipse dá-nos conta de que existe alguém que lê e outros que só ouvem. Ou seja: a transmissão do conhecimento, à época em que o texto de Apocalipse foi fixado, era feita maioritariamente da mesma forma: oralmente. Havia alguém que lia ( privilégio de poucos) e havia alguém que ouvia; mas nem por isso, tanto quem lia como os que ouviam, deixavam de ser abençados de igual maneira. Uma condição estava implícita à leitura e audição, para que se pudesse usufruir da bênção divina: guardar !
Bem aventurados os que “Guardam” . Não tenho dúvida nenhuma de que todos conhecemos o valor deste vocábulo e a sua importância na vida e no tempo. Guardar, conservar, dá-nos a certeza de que garantimos não só o presente mas fundamentalmente o futuro. Guardar a memória, guardar valores, guardar padrões, guardar certezas e convicções. Guardar a fé.
Guardar o conhecimento garante-nos que saberemos e o poderemos aplicar quando dele necessitarmos. Guardar as palavras da professia, diz Apocalipse.
É importante ter conhecimento. A luta pela sua aquisição insere-se hoje nos programas e objectivos de todos os quadrantes da actividade humana. Mas o conhecimento, em si, não pode deixar reféns de matrizes ou ideias feitas aqueles que o desejam e procuram. Seria aliás uma incompatibilidade formal se tal se verificasse. Conhecimento é passaporte para além do imediatismo, sendo que este último reduz o ser humano à escuridão da caverna e à redundância da vida que se pretenda encerrar no utilitarismo dos ciclos temporais da humanidade de todos o séculos. Acho que era isso que Jesus queria dizer às multidões no Evangelho de Lucas : “Hipócritas, sabeis discernir a face da terra e do céu; como não sabeis, então, discernir este tempo ?”.
O sábio Salomão disse saber que há um tempo e um propósito para tudo debaixo do céu. Não sei se o meu avô José saberia dizer quem tinha sido Salomão. Provavelmente sim; quanto mais não fosse pelo conhecimento que teria da avisada sentença que o rei proclamou sobre a pertença da criança disputada por duas mulheres, relatada pelo Livro Sagrado. Mas há uma coisa que eu tenho a certeza que ele sabia: dar crédito ao tempo e “adivinhar-lhe” os contornos pelos sinais que este lhe transmitia.
Os antigos gregos, contemporâneos do apóstolo Paulo, adoravam um Deus desconhecido quando ele cruzou Atenas, e foram repreendidos por tanta superstição, que os levava, até, a erguer altares a divindades que não conheciam. Podemos acusar os gregos de então de muita coisa, mas não de falta de sabedoria. Guardavam toda a que podiam, mesmo aquela de que desconheciam pontualmente a utilidade. O grande apóstolo aproveitou a ocasião para lhes explicar que há um só Deus, que criou os homens, que deu a vida, a respiração e todas as demais coisas. Mas um Deus que determinou também, ao homem, os tempos desde o princípio ordenados e os limites para essa ordenação. Disse-lhes também que , nesse intervalo, que se estende entre a ordem criada no princípio dos tempos e o limite que lhes está imposto, era a oportunidade que tinham ( e temos ) de procurar o Verdadeiro Deus, que está perto de nós, ainda que o façamos “tacteando”.
Como cristão não me chega ler, ouvir e interpretar. Não devo ser apenas observador do tempo que outros deixam escorrer sem interpelar a significação dos sinais que deixa. Não devo apenas celebrar a sua passagem “assobiando para cima” e fingindo que tudo o que me rodeia não me diz respeito. “Guardar”, no meu caso, como cristão, implica estar preparado para aplicar, como Filipe, no momento oportuno, aquilo que recebi. Estar atento ao que o Espírito Santo me diz, sem fazer “orelhas moucas” à voz de Deus. Preciso “chegar-me” aos que lendo não entendem e aos que ouvindo não percebem, ou não querem perceber. E não preciso, como Filipe, que o Espírito Santo me esteja sempre a dizer, a cada momento, o que devo fazer ou dizer. Desde que Ele habite em mim, serei sensível aos seus desejos e aos seus propósitos. Basta-me um “toque” seu para que eu saiba o que devo fazer. Ou, como diz Pedro, na sua primeira epístola: ”… estai sempre preparados para responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós” ( l Pedro 3:15).