Em poucas zonas do país me sinto tão em casa como no Alentejo. E eu que até nem sou alentejano, pelo menos, não, por cá ter nascido. Mas haverá alguém mais alentejano do que quem tenha as suas raízes maternas em Montemor-o-Novo e paternas em Safara ?
Nasce-se em Lisboa como se poderia nascer numa outra qualquer terra deste pequeno país. Foi isso que me aconteceu nos idos de 50/60.
Hoje dei comigo a pensar na minha infância e pré-adolescência e em todos os vínculos que me viriam a sublinhar a personalidade e o carácter e que foram adquiridos nesse período da minha vida, na vila de Lavre, em pleno Alto-Alentejo
Por ser filho de mãe solteira, acolheu-me, a partir dos dois anos de idade a única e verdadeira mãe que tive: a mãe de minha mãe. E foi aí, numa terra de histórias sem história que se forjou o meu futuro.
Território de gente esculpida pelo sol inclemente de verão e pelos invernos rigorosos, que faziam parecer o trabalho nos campos castigo nunca suficientemente cumprido de penas impostas de geração para geração. Lavre foi terra dos meus encantos. Lá experimentei todos os jogos que a imaginação, e só a imaginação de crianças poderia esboçar. Fui herói, xerife, polícia, ladrão, cavaleiro, guerreiro e toda a sorte de outras personagens que nessa altura pensava viverem à distância da subida pela íngreme escada do velho depósito de água, que uma vez conquistado nos concedia a visão da florescência nocturna da grande cidade-capital e de todos os sonhos que se mediam à mesma distância da ambição de se poder vir a ser alguém na vida, ou ficar para sempre ligado ao fado de tantas gerações de homens e mulheres escravos de uma terra dura que sempre lhes minguou o pão. Felizmente que o meu fado nunca foi esse, sendo, talvez por isso, por não alimentar ressentimentos, que me interno frequentemente nos lugares da minha infância para beber odores, sentir fragrâncias e estender olhares pelos campos que encheram os meus verdes olhos de menino ladino e salta-pocinhas debicando em quintais e hortados o fruto proibido mas sempre apetecido. Talvez também por isso, ainda hoje me incluo, seguramente, no número de cidadãos que mais fruta consomem, hábito ganho em furtivas investidas que só a inocência de uma criança dispensa autorização ou posterior pedido de desculpas. Claro que agora compro-a, de banca em banca e normalmente com sabores internacionais, calibrados por um qualquer burocrata de Bruxelas e colhidos em distantes latitudes da Lavre da minha infância.
Como foi feliz, a minha infância. Mesmo se para a gente grande que a povoou , e que não gostava das minhas brincadeiras travessas, felicidade não era uma palavra conjugável com qualquer outra conhecida então, na vila de Lavre.
O trabalho rude de quem tinha que o fazer de sol a sol nem sempre garantia todo o pão que fazia falta sobre a mesa. Hortas e capoeiras preveniam as falhas.
A mim, nada me faltava, tirando um pormenor ou outro. Mas quem se lembrava disso naquela altura de permanentes brincadeiras ? A idade de jovem adulto sim, revelar-me-ia a violência psicológica do que me tinha faltado em criança. Mas nada que, tarde ou cedo, a vida não nos ensine a superar.
Aos trabalhadores rurais, por outro lado, só sobrava o cassetete da pancada brutal e animalesca de quem fazia profissão de cortejar e adular quem sempre estava do lado bom da vida.
Parte da minha família materna deu corpo ao nobel de Saramago ao servir de "inspiração" ( Dito assim não melindra ninguém embora Saramago não deixasse de ser Saramago se o disséssemos de outra forma ) a "Levantado do Chão" , o seu primeiro livro a sério.
Sou parte integrante dessa história mesmo se o meu nome não está lá, e nem mesmo sequer consta nas memórias do meu tio-avô João Serra. Homem de fés e de príncipios mais do que de ideologias. Como tantos outros da sua geração, cedeu o corpo à perseguição da PIDE, a polícia política do Estado Novo em Portugal, e à GNR, a força militarizada que imitava o papel de Robin Wood, mas ao contrário; qualquer das duas não se fizeram rogadas a malhar o corpo pequeno e franzino do meu tio-avô, ou de outros que, como ele, levantavam a voz acima da sua própria estatura física. O que contava era a sua estatura moral.
Aprendi a contar estrelas, e a deixar-me encantar por elas, com o meu avô José, que também me deliciava com as suas histórias de touros e campinos do seu Ribatejo natal, mas também com eternas lendas tantas vezes repetidas até que as soubesse de cor. De cada vez contadas , era sempre como se fosse a primeira.
Tomei contacto com o Evangelho, em Lavre, pelos meus seis para sete anos de idade. Nessa altura era difícil ser cristão-evangélico em Portugal, especialmente no interior alentejano, onde ser protestante ou comunista não equivalia a qualquer distinção da brutalidade aplicada pelas chamadas "forças da ordem". A porrada não distingue credos. Mas foi aí, nesse ambiente de perseguição maldosa, que ficou plantada a semente que viria a romper a terra dura do meu racionalismo quando a adolescência se prometia aos alvores da juventude, aos 16 anos.
É por isto tudo, que Lavre e o Alentejo, todos os alentejos, me introduzem sempre às gratas memórias dos campos abertos por onde me perdia em mil epopeias ao ritmo dos heróis dos meus livros de banda desenhada, de páginas abertas ao fio da navalha, Mundo de Aventuras, Ciclone, Condor, Falcão, etc.
É por muito do que deixo dito, que o alentejo fará sempre parte das minhas referências de vida, dos códigos fundadores de quem sou hoje.
É também por isso que acho que quem tenta impor estigmas aos alentejanos devia antes fazer vénias à sua coragem, ao seu espírito de sacrifício, ao seu apego ao trabalho e à dignidade no exercício do mesmo bem como ao seu ecletismo e tolerância política e religiosa, descontando eventualmente da história recente se a sua vontade foi ( ou não ) instrumentalizada por pessoas que do alentejo e dos alentejanos só queriam a coragem de lutar por melhores condições de vida.
Uma nota final: Quando se sentar à mesa de um restaurante para se saborear um qualquer prato tradicional alentejano, pare por um momento e pense: "porque será que quase todos os pratos alentejanos têm no pão, e nas ervas aromáticas colhidas no campo os seus principais atributos ? Ou "porque será que tantas sopas alentejanas são confeccionadas com ervas que crescem livremente na natureza sem que mão humana as tenha semeado ou plantado" ?
Parecem questões irrelevantes, se acharmos que isso não tem nada a ver com fome ou falta de pão sobre a mesa da família. Talvez um dia a verdadeira história do Alentejo e dos alentejanos venha a ser contada, despida de paixões ideológicas e vestida do rigor com que a luta pela sobrevivência de um povo deve ser narrada, e aí percebamos muito mais do que a estigmatização continuada por décadas nos permite entender.
Dou graças a Deus, por ser descendente de alentejanos e filho de Deus. Em qualquer das condições me sinto um homem dignificado e honrado, mesmo que muitas vezes imerecidamente.
Jacinto Lourenço