As viagens deixam-nos meio zonzos. Lembro a minha ansiedade, quando em criança me era dito que iríamos viajar de "camioneta de carreira". Eram viagens curtas, as da minha infância. Normalmente separadas por 26 km entre o ponto de origem e o de destino, Lavre e Coruche, Alentejo/Ribatejo, numa fronteira indefinida nos roteiros do quotidiano. Viagens que eu fazia, bebendo, pelo caminho, todo o "folclore" que a "camioneta" suscitava à sua passagem. Paisagens aceleradas, pessoas agitadas, paragens prolongadas, sobe e desce, beijos e abraços, despedidas e recepções como se todos viajassem de/para distantes latitudes. Não havia pressa de chegar, havia pressa de partir. As bagagens tinham direito a invulgar perspectiva sobre o comprido tejadilho da "camioneta", com acesso pela escada pendurada à ré desta.
Viajavam "em cima" da nossa cabeça.
As viagens, nessa altura da minha vida, tinham essa coisa fantástica de me impedirem de dormir na noite anterior, tal era a ansiedade. Mas compensavam-me no dia seguinte, enchendo-me os olhos ávidos e gulosos da minha infância com tudo o que era novidade e, para mim, nesses tenros anos, tudo era novidade ao longo de 26 escassos quilómetros. Talvez por isso, ainda hoje gosto de partidas e chegadas. Nem sempre gosto, de igual maneira, de umas e de outras. Às vezes gosto de ambas, outras vezes não gosto de nenhuma. Talvez também por isso, ainda, e sempre, hei-de gostar de terminais de passageiros, de aeroportos, de portos de embarque, etc. Sou seduzido pela agitação, pela alegria e pelo riso fácil e franco de quem chega e de quem parte. Descubro continentes e culturas, descubro medos, tristezas e pânicos disfarçados nas atitudes de desinteresse com que os passageiros encaram a banalidade das formalidades de embarque. Descubro isso nos rostos das pessoas com quem me cruzo num qualquer terminal .
Continuo a beber dessa felicidade de imaginar que uma viagem, mesmo que implique alguma ansiedade, é sempre um momento de descoberta, por vezes de nós próprios. Basta lançar olhares e sonhar. Pessoas em viagem, são mapas de vida em que leio, mesmo por breves instantes, os caminhos que lhes estão na alma, e que farão com que o seu sorriso, tal como o meu, se abra ou se feche!
Felizmente que as bagagens já não viajam "à nossa cabeça", mas debaixo dos nossos pés. Assim torna-se mais fácil "descarregá-las", numa viagem, como na vida. E o "cobrador", personagem menos simpática dentro da "camioneta", e que já não sobe nem desce pela escada à "ré" da dita, não terá também possibilidade de nos atirar, de forma bruta, o "talego"* para cima.
E lá vou em mais uma viagem. Acho que, desta vez, vou conseguir dormir antes de partir. Na auto-estrada que serpenteia e fere a serra, como se ferira uma virgem, ou nas áreas de serviço para sul, tenho já mais difculdade em ler mapas nos rostos de quem comigo se cruza. As pausas são rápidas; os sulcos ou franzidos da pele, são muito menos reveladores, escondem-me a percepção debaixo de máscaras convenientes. Depois, os G.P.S.s, essas maravilhas da tecnologia moderna já com pré-programação do caminho, impedem-me de ler a sinuosidade do traçado dos estados de alma. Os risos são amorfos e oprimem-me a imaginação. Nas minhas deambulações, descubro cada vez menos continentes nas pessoas, diferente do que fazia em criança, mas os meus olhos continuam gulosos por tudo o que podem observar, nas grandes ou pequenas viagens. Agora prendo-me mais a descobrir gente em finais de viagens- Gente chicoteada pelas turbulências da vida. Foi isso que Cristo me mandou fazer. Os continentes distantes ou os traços retorcidos de cores vivas nos mapas, deixaram representar um obstáculo para chegar às "ilhas" de mascarados, onde pessoas de sorrisos doentes permanecem amarradas a bagagens continuamente colocadas sobre as suas cabeças, sem terem percebido ainda que as podem já transportar debaixo dos pés. Os meios para seguir viagem são mais fáceis, mas os sorrisos mais difíceis.
Mais difícil, para mim, é perceber o que me dá mais gozo se a partida ou a chegada.
Jacinto Lourenço