Qualquer abordagem desapaixonada à História do Cristianismo permite verificar que a igreja cristã se organizou para sobreviver, num primeiro momento, mas depois não terá resistido à tentação do poder, tendo ocupado o vazio deixado pela saída da corte imperial de Roma para Constantinopla, depois da conversão do imperador Constantino.
Agora, com Roma nas suas mãos, o papado não resistiu a agir por mimetismo com o sistema imperial romano, tendo organizado a igreja à sua imagem e semelhança.
Sendo assim, é óbvio que os problemas palacianos da corte romana (que levaram, aliás, à queda do império) se viriam a repetir nos corredores do poder religioso agora organizado desta forma, e em nome de (um outro) Deus.
Desde aí que a igreja cristã, nas suas múltiplas formas institucionais e visíveis se depara com esta fortíssima tentação. Quando está mancomunada com o poder dificilmente abre mão dele, quando está afastada das esferas do poder faz tudo para se aproximar dele. A história do Cristianismo, no fundo, passa essencialmente por esta dialéctica do poder, ao longo dos últimos dois milénios, tanto antes como depois do cisma do Oriente e da Reforma religiosa na Europa.
É quase uma fatalidade. Aqueles que verberam a igreja institucionalizada, e que apenas se concebem em movimentos ditos do Espírito, menos estruturados, acabam, mais cedo ou mais tarde, por ceder à pressão organizacional, já que todo o poder que não seja unipessoal não se pode exercer sem o controle de uma estrutura fixa, e por vezes mesmo este não prescinde dela.
Mas com a estrutura fixa vem toda a sorte de procedimentos enviesados, em nome da estrutura, de modo a salvaguardar posições e interesses particulares, sacrificando claramente os ideais fundadores.
Esta é a triste história das denominações cristãs em geral, que se caracteriza por alguns dos seguintes perigos específicos:
Sacrifício dos mais capazes
Os elementos melhores e mais capazes são afastados pelos medíocres e os pouco escrupulosos, que olham a estrutura eclesial não como uma ferramenta que serve os ideais da denominação, mas como instrumento de alavanca para a conquista e a manutenção do poder. Sendo assim, convirá usar a estrutura e todos os meios possíveis para afastar a concorrência.
Cristalização doutrinária
A denominação deixa de ser livre para fazer pesquisa e investigação profunda e desapaixonada, para fazer teologia pura, já que considera o seu corpo de doutrina como sinal distintivo e superior aos das demais denominações, não podendo por isso ser posto em causa em hipótese alguma.
Imobilismo
Quanto maior é mais pesada e imobilista se torna a denominação, que assim não consegue acompanhar o ritmo da vida nem a dinâmica da sociedade dos homens a quem supostamente serve, nem dar uma resposta atempada às novas problemáticas. Normalmente começa por negar os novos problemas, ou menosprezá-los, antes ainda de se debruçar sobre eles, de forma a estudá-los e a desenvolver uma posição sobre os mesmos, de modo a propor uma orientação espiritual aos seus fiéis.
Afastamento da sociedade
Daí que o afastamento da realidade seja inevitável, o que se torna mais visível pelo discurso utilizado, normalmente inadequado, e de tendência restritiva e castradora.
Incompreensão do conceito de fraternidade cristã
Acantonados nas suas baias denominacionais, as lideranças destas estruturas eclesiais têm uma real dificuldade em entender a transversalidade e universalidade da fé cristã, dificilmente conseguindo enxergar para lá do seu quintal.
Por vezes dão mesmo a sensação de acreditar que Deus é sua propriedade exclusiva, e que todos os outros cristãos estão apenas “à beira do caminho”.
Reinterpretação da História
Neste sentido desenvolvem normalmente uma interpretação revisionista da História, procurando a patine do tempo como sinal de respeitabilidade, de legitimidade e de aprovação. Alguns chegam ao ponto de avançar dados históricos falsos, no afã de provar que a sua denominação é mais antiga do que efectivamente será.
É evidente que a Igreja de Jesus Cristo é, antes de mais, uma realidade espiritual. Mas como vivemos no mundo dos homens necessitamos de alguma estrutura organizacional para podermos interagir com eficácia.
Daí que o grande desafio dos cristãos seja, cada vez mais uma espécie de equilíbrio instável, saber lidar com a sua carne (humanidade) sem nunca deixar de preservar o que é de facto importante e fundamental, o primado do espírito.
Via A Ovelha Perdida