Não sei se sou contra ou a favor do acordo ortográfico. Julgo que só se pode ser contra ou a favor de alguma coisa quando se conhece, senão na íntegra, pelo menos numa boa parte, o tema sobre o qual queiramos tomar posição. E o problema só pode estar em mim, que não me interessei em aprofundar , suficientemente, o grosso do que está em cima da mesa quanto ao acordo.
Vistas pela rama, há no entanto coisas que gosto e outras de que não gosto, naquilo que já me chegou pela comunicação social acerca do dito acordo. Mas o que não posso é deixar de reconhecer que a língua portuguesa há muito saiu do berço e assumiu os seus direitos de emancipação. Sem dúvida que há roupagens que já começam a estar-lhe apertadas. É melhor renovar-lhe o guarda-fato, porventura com "roupas" mais actualizadas e arejadas, mais desenvoltas, que lhe permitam uma maior liberdade de movimentos, mas sem perder de vista o que lhe é essencial e que lhe permite avançar, serenamente, sem se desagregar dos seus valores fundamentais. Que não se queira dar o passo mais largo que a perna, mas que não se obrigue também a língua a usar um fato ( terno ) remendado ou com calças à meia-canela e mangas a subir braço acima.
Uma língua é algo vivo, e é apenas isso que lhe dá garantia de continuidade e até perpetuidade. O português que usamos, deixou, há muitos anos, de ser património exclusivo dos falantes que habitam o extremo ocidental da Europa e, por quantas mais pessoas e povos for falado, mais possibilidades terá de se manter vivo e de possuir fundadas expectativas de continuidade geracional em todos os países em que se implantou e é falado na actualidade.
A língua é uma "coisa" dinâmica que sofre processos de erosão mas também de enriquecimento que vão chegando, pouco a pouco, ao seu porto de acostagem, na justa medida em que as sociedades se desenvolvem, ou não, e as gerações se sucedem. É isso que tem acontecido com o português, mesmo se quando apenas limitado ao nosso pequeno e singular espaço geográfico. Mas a “nossa” língua, hoje comum a tantos milhões, ultrapassou, há muito, as fronteiras europeias, tornando-se veículo de comunicação e instrumento de trabalho nas distantes latitudes onde aportou levada pelos originais falantes. É por isso que ela deixou há muito de ser “nossa” e passou a ser património e casa comum de muitos milhões de pessoas. Foi Fernando Pessoa que disse: “ a minha pátria é a língua portuguesa”. É esta pátria que hoje acolhe milhões.
Enquanto património comum, a língua não pode ser encarada como propriedade privada de um povo ou de uma nação em particular e muito menos ser vista como elemento de pressão ou de "negociação" mercantilista que tente acorrentar algo que sempre cresceu e se desenvolveu, livre de fronteiras e ao sabor das necessidades comunicacionais e culturais de cada povo. A língua, como a vida, encontra sempre um caminho por onde seguir e que pode nem sempre ser coincidente com a nossa vontade. À língua, não se lhe pode impor aquilo que ela própria não quer ou não precisa. Ela é a última fronteira de liberdade para qualquer ser humano. Prova-se, aliás, pela história da generalidade das línguas conhecidas, que estas raramente se deixaram aprisionar e, nos casos manifestos em que o fizeram, isso acabou por lhes ser fatal.
A nossa língua, a portuguesa, deve ser livre para aproveitar o que de melhor todos os seus falantes lhe vão acrescentando ou retirando, função do ajustamento desta ao quotidiano de quem tem que a usar como veículo de comunicação. E sobre isto, eu posso opinar.
Quanto ao acordo, vislumbro-lhe uma grande virtude ( como reconheceria a qualquer outro acordo similar neste domínio ), mesmo sem o conhecer integralmente, e que se resume à possibilidade de que a língua, como afirmou Pessoa, continue a manter a vantagem, óbvia para todos, de ser uma “pátria” comum para quem tem que a usar de forma tão abrangente e em lugares tão distantes uns dos outros. De resto gostaria que os académicos que o concluíram e os políticos que o negoceiam, arranjassem forma de o trazer até ao grande público, para que, cada um de nós, possa, pelo menos, perceber se o mesmo respeita, ou não, os pressupostos que aqui enunciamos e que derivam, em primeira ordem, parece-nos, da realidade dos falantes e dos contextos culturais a que o mesmo se vai aplicar. Este acordo não pode ser laxista ou redutor, e isso, logo à partida, empresta-lhe os condimentos essenciais para ser polémico. É que, estas coisas da língua, como está bem de ver, não se podem decidir apenas por decreto… Ainda por cima no que respeita à língua, a portuguesa, que é um pouco como as enguias, escapa-se-nos das mãos e, a páginas tantas, lá está ela a esgueirar-se pelas malhas da rede do melhor acordo a que a tentem aprisionar.
Como cidadãos portugueses, julgo que devemos estar orgulhosos desta herança, património inestimável, que é o português a ser falado por cerca de duzentos e tantos milhões de pessoas em todo o mundo. E é bem provável que, daqui por mais algumas gerações, possamos vir a ser conhecidos no mundo, mais do que por qualquer outra razão, pelo legado linguístico que deixámos, independentemente das mutações e alterações a que ele se vá adaptando em linha com a realidade de cada povo e de cada momento social e cultural que aquele viva. Foi sempre assim, ao longo da história, e não é seguramente por isso que deixamos de lhe reconhecer beleza e utilidade íntrinseca. Uma língua resulta, em primeira e última análise, desse caldeamento, dessa troca, dessa exposição continuada aos tempos e aos momentos de cada povo, no seu todo, e das suas necessidades orais e escritas de comunicar, transmitir, deixar a sua marca no tempo.
Jacinto Lourenço