Às vezes diversas “técnicas” de usar o concreto aparecem juntas nos ensinamentos de Jesus. Assim a parábola, a ocasião e o caso que contradizem a dominante suposição geral aparecem reunidos no exemplo do “bom samaritano” (Lc 10).
Jesus realmente carregou nos detalhes. E, no entanto, a história é muito verdadeira. É um desses casos em que, com aquilo que podia muito bem ser uma mera parábola, Jesus talvez estivesse contando uma história que realmente acontecera. É o tipo de coisa que todos os seus ouvintes sabiam que de facto acontece. É o tipo de coisa que acontece ainda hoje.
Quando Jesus afinal faz a pergunta decisiva — “Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu na mão dos salteadores?” —, qualquer pessoa decente só tem uma resposta a dar. Tergiversar mais seria revelar um coração irrecuperavelmente iníquo. Assim o intérprete teológico responde: “O que usou de misericórdia para com ele”. Para ele seria demais dizer apenas: “o samaritano”.
Mas nós precisamos dizê-lo, e precisamos compreender o que isso significa. Significa que as suposições gerais dos ouvintes de Jesus sobre quem tem vida eterna precisam ser revistas à luz da condição dos corações das pessoas. O relato não ensina que podemos ter vida eterna apenas por amar o nosso próximo. Também não podemos nos safar com esse belo legalismo. A questão da nossa postura diante de Deus ainda precisa ser levada em conta. Mas na ordem de Deus nada pode substituir o amor pelas pessoas. E definimos quem é o nosso próximo pelo nosso amor. Fazemos de alguém o nosso próximo cuidando dele.
Não definimos primeiro uma classe de pessoas que serão os nossos próximos para depois elegê-los objectos exclusivos do nosso amor - deixando os outros estirados na estrada. Jesus habilmente rejeita a pergunta — “Quem é o meu próximo?” - e a substitui pela única pergunta realmente relevante aqui: “De quem serei eu o próximo?” E ele sabe que só podemos responder a essa pergunta caso a caso no nosso dia-a-dia. De manhã ainda não sabemos quem será o nosso próximo naquele dia. A condição do nosso coração irá determinar quem é que, ao longo do caminho, será o nosso próximo, e principalmente a nossa fé em Deus é que determinará se teremos força bastante para fazer desta ou daquela pessoa o nosso próximo.
Se Jesus estivesse aqui hoje, a história seria um pouco diferente. As palavras bom samaritano agora identificam na nossa sociedade uma pessoa de índole especialmente boa. Temos até leis para proteger os “bons samaritanos” quando eles fazem as suas “boas obras”.
Para tecer hoje o mesmo argumento, Jesus poderia colocar o “bom samaritano” no lugar do sacerdote ou do levita da narrativa original. Ou se ele vivesse no Israel de hoje, provavelmente contaria a parábola do “bom palestiniano”. Os palestinianos, por outro lado, ouviriam um relato sobre o “bom israelita”.
Nos Estados Unidos, logicamente, ele nos contaria a parábola do “bom iraquiano”, do “bom comunista”, “do bom muçulmano” e assim por diante. Para alguns segmentos sociais, teria de ser a parábola da boa feminista ou do bom homossexual. Para outros ainda, a do bom cristão ou do bom frequentador de igreja produziria o efeito desejado. De fato, diante de algumas actuais posturas seculares, falar do bom sacerdote ou do bom diácono talvez fosse o mais apropriado. Todos esses exemplos derrubam caras generalizações a respeito de quem, com certeza, tem ou não a vida eterna.
No relato do bom samaritano, Jesus não só nos ensina a ajudar os necessitados; num nível mais profundo, ele nos ensina que não podemos identificar quem “tem a vida eterna”, quem “está com Deus”, quem é “bem-aventurado” só por olhar as aparências. Pois essa é uma questão do coração. Só ali o reino dos céus e os reinos humanos, grandes e pequenos, estão entrelaçados. Estabeleça as fronteiras culturais ou sociais que quiser, e Deus dará um jeito de atravessá-las. “O homem vê o exterior, porém o Senhor, o coração” (ISm 16:7). E “Aquilo que é elevado entre os homens é abominação diante de Deus” (Lc 16:15).
In Igreja do Jubileu