Culpa é um dos ingredientes mais nocivos da religião. Aliás, muita conversa eclesiástica se esgota quando se desmascara a instrumentalização da culpa. Os auditórios religiosos lotam porque as pessoas são imperfeitas, carregadas de mazelas, incapazes de lidar com as sequelas da adolescência. É preciso ser corrigido, aperfeiçoado, purgado. Mas, inadequados diante de uma divindade absolutamente correcta e exigente, todos se sentem devedores e ninguém tem o direito de esboçar qualquer defesa.
Recordo-me que nas brigas com o Renato Jorge, meu irmão um ano mais novo, eu usava uma arma infalível para vencê-lo: “Vou contar para o papai”, dizia. Para depois acrescentar: “Você pensa que eu não sei de tudo?”. Na verdade, não sabia de nada. Mas meu pobre irmão sempre tinha culpa no cartório. Rapidamente se rendia diante das minhas ameaças.
O senso comum dos religiosos é que todos estão degradados porque são inerentemente maus, promíscuos e ímpios. Daí o apelo recorrente dos púlpitos de que precisamos ser salvos de nós mesmos. Por toda a vida, aceitei esta lógica e acabei tornando-me o meu maior inimigo. Detestei-me por achar-me uma fonte perene de ruindade. Eu me fustigava esperando não apanhar de Deus.
Acreditava que antecipando-me às penas, conseguiria sensibilizá-lo. Imaginava que o Todo-Misericordioso contemplaria a minha auto-flagelação e me trataria com leniência diante dos vergões.
Hoje já não acredito que precise ser salvo de mim mesmo. Pelo contrário, minha salvação acontece quando aprendo a conviver com o meu interior. Quando faço as pazes com meu ser. Quando me aproximo de quem está mais próximo de mim: eu.
Minhas pulsões de vida e de morte estão para além do bem e do mal. Não as considero pecado ou virtude, apenas forças poderosíssimas que compõem a minha humanidade. Dentro de mim habitam sombras e luzes. Não preciso exorcizar as sombras, demonizando-as, agora reconheço-as como partes de minha constituição.
Meus tropeções foram necessários – pecados, no linguajar religioso – na construção de minha história. Todo o processo pedagógico precisa deixar espaço para que se desafine, pise na bola, dê trombada, erre. Sem odiar, não se aprende o valor da doçura; sem invejar, não se aprende o valor da reverência; sem cobiçar, não se aprende o valor do contentamento. Ódio, inveja e cobiça, portanto, também me moldaram.
Não me detesto e não suspeito do meu corpo. Não me sinto podre. Contudo, não sou ingénuo. Reconheço que de dentro do meu coração brotam águas amargas. Minhas uvas são azedas. Sei que tenho um potencial destrutivo de mil bombas atómicas. Carrego ressentimentos. Meu espírito se encanta com o que não presta.
Lido com essas idiossincrasias, dando outro sentido para responsabilidade. Responsabilidade passou a ser definida como iniciativa e capacidade de responder às demandas éticas da vida. Pretendo tornar-me responsável não por culpa ou medo, mas por reverência à vida, ao meu próximo e à mim. Para ser íntegro, não preciso amputar narcos do coração e vilipendiar-me como um bandido ordinário. Para crescer, posso me valer, inclusive, de meu passado suspeitosíssimo.
Depois de noites insones, depois de me angústiar com tantas falhas, afirmo: as minhas maiores decepções e mais profundos fracassos me empurraram para frente. Com eles, ganhei coragem de encarar-me.
Todo o novo degrau de maturidade é uma travessia. Toda a mudança, morte e ressurreição. Nasci de novo desde que alcei a bandeira branca na guerra que travava comigo mesmo. Hoje aceito que se Deus quis tabernacular em mim, não tenho o direito de implodir-me.
Soli Deo Gloria.
Pr. Ricardo Gondim
Via PavaBlog