A surpresa das nossas vidas, nos dias que correm, nem é tanto a agonização da economia e as dificuldades que isso está a criar a cada português. Não, com isso nós até lidamos bem. Em Portugal não precisamos preparar-nos para crise nenhuma , presente ou futura, já que nunca fizemos mais nada, ao longo da nossa história como povo, que não fosse saltar de uma para outra : política, social ou económica. Em matéria de crises damos lições a quem precisar, em particular a quem está agora a experimentar viver com muito menos do que aquilo a que estava habituado. E sabem, ainda bem que a agudização negativa das condições da economia nos veio alertar para a crueza das coisas e da nossa vida. É que, por estes últimos dias, nós, portugueses, até já pensávamos que podíamos levar a vida à imagem dos restantes cidadãos de países economicamente mais desenvolvidos . Assim, perante a realidade que nos esbofeteia a cada manhã em que despertamos para o mundo, ficamos a saber que não nos podemos deixar levar na “onda”, mas antes manter as nossas defesas em alta face aos “Tsunamis” que nunca nos deixarão. “Razão” tinha Oliveira Salazar para manter o povo na ignorância; assim sempre o “salvava” dos impactes das crises. Chegáva-nos saber que éramos pobres, mas que estávamos protegidos pela “santa madre igreja católica”, que nos ia esclarecendo acerca dos sete pecados mortais, e pouco mais (porventura para não nos preocupar demasiado com questões teológicas de difícil alcance para uma população raramente habilitadada com pouco mais do que o hoje designado 1º ciclo do ensino básico ), pois isso de redenção e fé são incógnitas de outras equações a que nem mesmo alguns párocos estavam habilitados a responder, preferindo as homílias litúrgicas do missal em língua latina. Desta forma, ninguém faria perguntas desconfortáveis.
A surpresa das nossas vidas, hoje, é a nova realidade social para a qual não estávamos de todo preparados e que nos confronta com toda a sorte de novas culturas, de perto e de longe, trazidas por homens e mulheres , que se instalaram no rectângulo. Esta, é a globalização que me faz pensar. Assimilar cidadãos de outras origens geográficas, que vieram em busca de um destino melhor para as suas vidas e das suas famílias, é fácil e nós sabemos fazer isso muito bem, até porque somos igualmente especialistas no caldeamento de culturas e raças. Como lidar com esta nova realidade que nos entra todos os dias, literalmente, casa adentro, e para a qual nenhum português se preparou, entretido que estava a cogitar sobre os benefícios que o espaço Schengen lhe iria trazer, e das novas possibilidades de transacções comerciais em Badajoz sem ter à perna a zelosa guarda fiscal, a contar, escrupulosamente, na fronteira da estupidez, quantos caramelos transportávamos nos bolsos.
Há poucos dias dei-me conta de um pequeno papel escrito pelo meu filho mais novo, de dezoito anos, que deixara, visível sobre um móvel em casa, para que a minha esposa lesse e pudesse informar-se no Hospital onde trabalha. Falava, o tal escrito, acerca de um amigo do grupo alargado dos amigos do meu filho, assaltado e esfaqueado na rua, às onze horas da noite, e que por isso teve que ser conduzido ao hospital. Claro que, dirão muitos, isso é o trivial das notícias dos tabulóides nacionais e de estações de televisão mais preocupadas em realçar a negatividade social. Certo; mas não é por ser trivial que temos que nos habituar a conviver com esta brutalidade infame e inaceitável. Não devo, nem quero habituar-me a encarar, impassível, esta suposta normalidade . Tenho que me questionar, todos os dias, sobre o que leva um país de brandos costumes a mergulhar num clima de criminalidade violenta, transmitida não poucas vezes em directo pela TV, que assalta e afecta, violentamente, a nossa vida diária, mesmo que as nossas autoridades mais relevantes nos queiram fazer crer que não se passa nada e que é só alarmismo dos do contra.
A resposta que me vem à mente, de repente, é de que não nos preparámos para o espaço Schengen nem para os corredores que este iria abrir e pelos quais passam livremente, todos os dias, não apenas honestos cidadãos em busca do seu “el dorado” ( se é que isso ainda existe na velha Europa ), mas igualmente toda a sorte de gente menos bem intencionada, ou a quem as condições que aqui encontraram, retiraram qualquer boa intenção inicial. A tudo isto, procuram muitos responder com posições xenófobas, esquecendo que somos nós próprios, portugueses, um povo tradicional de emigrantes. Outros preferem o laxismo, o “dolce far niente”, o deixa andar.
Julgo que é preciso repensar Schengen, não nos seus bons propósitos, porque esses deverão manter-se, mas no que concerne ao controlo deste livre espaço de circulação, para impedir a tal gente menos bem intencionada de entrar numa dimensão geográfica e humana que se quer de construção pacífica e de oferta de esperança a cidadãos dela privados nos respectivos países de origem, obrigados assim à emigração. Se não houver coragem para o fazer, então que se reforcem as medidas internas de prevenção à criminalidade, mas, ao mesmo tempo, que se olhe preventivamente para as políticas de integração social, formando cidadãos autónomos, dando-lhe novas competências que lhes devolvam um futuro de oportunidades e não de pobreza ou marginalidade. Mas que se comece já, sendo que o “já”, é demasiado tarde. Passe o exagero, não queremos Faixas de Gaza dentro do território nacional. Os problemas, está bem de ver, não se resolvem com a criação de “guetos”, por maior ar de modernidade que se lhe queira emprestar. É preciso ir à raiz do problema e o problema, está onde sempre esteve: nas pessoas. Por isso, é preciso apostar nelas, na sua recuperação, na sua preparação, na sua integração plena. Dar-lhes as oportunidades que lhes faltaram ou lhes foram negadas até agora. E que melhor momento terá um estado para o fazer senão este, quando todos, por igual, temos dúvidas se aquilo que fizemos, ou em que trabalhámos até agora, será o mesmo que vamos fazer, e da mesma forma, daqui para a frente?!
É necessário, urgentemente, preparar gente para a nova matriz económica e social que virá a desenhar-se, e que não passará ( não deveria passar ), seguramente, pelo neoliberalismo de matriz anglo-saxónica, de um lado e de outro do atlântico, a não ser que os estados não tenham aprendido nada com a actual crise.
Se a globalização trouxe alguma coisa boa, foi a possibilidade de retirar dividendos sociais e ensinamentos do cruzamento produzido por diferentes culturas e nacionalidades nesta velha Europa que, composta por tantas fronteiras, se recusa a abrir mentalidades, no pânico de perder vantagens na sua assumida vocação hedonista.
A surpresa das nossas vidas será podermos vir a verificar que nada irá ser feito pelas pessoas, enquanto dura a crise, especialmente pelas mais desfavorecidas ou desprotegidas, qualquer que seja a sua nacionalidade.
A surpresa das nossas vidas será ver aceitar-se que o dinheiro e a ganância continuem a (des)governar a vida de milhões, fazendo com que desse exercício retirem benefício uns poucos milhares que precisam, esses sim, de uma verdadeira reconversão a outro valores, sendo que essa reconversão é sempre uma incógnita em potência.
Daqui por diante, teremos que aceitar que nos governem apenas os que menos nos desgovernam, porque, pelos vistos, cada um, procura, em primeiro lugar, “governar-se” a si próprio, perdendo, no dia seguinte a qualquer eleição, a vocação de serviço gritada a plenos pulmões numa qualquer campanha eleitoral.
Entre a realidade e a utopia, situar-se-á aquilo que nos possa surpreender no que restará de positivo à humanidade e à sua capacidade de aprender com os erros.
Jacinto Lourenço