quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Lisboa vista por Roque Gameiro e Affonso Lopes Vieira



(Rua do Benformoso, Lisboa - finais séc. XIX )
Roque Gameiro


...Atroz Lisboa, sob o azul mais lindo!,..
Não cuida ela em nos ministrar os bons cómodos da higiene e cultura universais, comuns às capitais da Cristandade.
Deixa vadiar rebanhos famélicos de crianças e expor ao colo de mendigas profissionais — horror supremo! — os bebés moribundos, de sorte que as suas ruas são as mais dolorosas do mundo de Cristo. Ao passo que nos ratinha, somítica, a luz, o calor e a água, não aprende a resolver o problema, em toda a parte resolvido, de equilibrar o moderno com o arcaico, e de criar um tom de decorosa harmonia, com ritmo de unidade. Delira com pontes fabulosas e sonha com metropolitanos fantásticos. Não lhe dói, porém, que o seu mais formoso monte, altar sagrado de tradições desde a Conquista, continue encimado por um palácio que o abandono torna sinistro, por mais que os beijos do Poente em cada tarde redourem a carcassa do que devera ser coroa ou elmo. Acomete a camartelo as derradeiras muralhas e bastiões que a brasonavam, e enfeita-se, dia a dia, com as galas horrendas do relismo cosmopolita.
¿Que fêz Lisboa, nas últimas décadas — mas, sôbre-tudo, nos últimos anos, — da Baixa pombalina, esse bairro, monótono, sem dúvida, mas quanto nobre na proporção, na solidez, na côr e pitoresco dos prédios, cuja conservação e tons de pintura a ordenança municipal impunha aos donos? Sou dos que negam a Pombal, tão grotescamente consagrado pelos nossos democratas como deus da «Liberdade», o génio que oradores idiotas lhe decantam.
Mas a verdade é que o Marquês edificou, sobre os escombros do terremoto, ou nas clareiras que os tiros de peça foram abrindo, uma bela traça de capital, rompendo, com a Rua Augusta, a mais notável artéria urbana da Europa da sua época, e ao-pé do rasgo da qual os boulevards de Paris, construídos um século depois, não testemunham tal cunho de audácia.[...]

Affonso Lopes Vieira 

Prólogo do Auto da Lisboa Velha