domingo, 28 de dezembro de 2008

Sobreviver ao natal

" (...) A caridade não devia reduzir-se a uns dias do ano. A caridade, no conceito muçulmano, e creio que também no mundo cristão, é para se praticar todos os dias, e sobretudo numa lógica de não apenas dar o peixe, mas de ensinar a pescar. Pois senão, que bondade e generosidade pode existir na prova da abundância por um dia, e na experiência da miséria e solidão nos restantes 364 dias do ano? Que fizemos de facto para mudar as coisas? Quanto do nosso tempo e saber oferecemos para que o Natal dos pobres e desprovidos possa melhorar de ano para ano? (...) o alcorão diz: «Oh humanidade! nós vos criámos homens e mulheres e fizemo-vos em grupos e sociedades, para que pudessem conhecer-se uns aos outros. O mais nobre de entre vós é aquele que for melhor na conduta» (49;13). A palavra «conduta» é «Taqwa» e aparece umas 200 vezes no Alcorão. Ela refere-se a uma base moral que subjaz a acção humana e a consciência ética das responsabilidades perante Deus e a sociedade. É Natal porque Jesus nasceu. Mas é porque Jesus nasceu que todos os dias são dias de fazer Natal, de nos excedermos nas boas obras (...). O excerto acima faz parte de um texto mais alargado publicado no jornal Público no Domingo, 21 de Dezembro, por Faranaz Keshavjee, num espaço que lhe é habitual. A razão pela qual despertou a minha atenção foi o facto de o mesmo estar em consonância com uma série de lugares-comuns que nos habituámos a dizer e ouvir, nos dias que antecedem o Natal, um pouco por todo o lado e da boca de quase toda a gente, mesmo se não é cristã. Obviamente que não sou Muçulmano, mas obviamente também que o facto de o não ser não me impede de olhar a temática do Natal pela mesma perspectiva de Faranaz Keshavjee, ainda que não conseguindo evitar outros lugares-comuns. Não me parece que o grande factor motivacional que leva as pessoas, hoje, a festejar o Natal, seja o nascimento do Salvador, tal como também não tenho já nenhum tipo de ilusão sobre o que representará o Natal para as gentes que a ele se agarram e lhe colam o novo epíteto de "festa de família". Julgo mesmo que reveste mais um tipo involuntário(?) de linguagem metafórica... O conceito cristão de família, o conceito que Cristo revelou de família, é mais alargado, mais amplo, mais universal e está claríssimo no evangelho de Mateus 12:46-50: 46 E, falando ele ainda à multidão, eis que estavam fora sua mãe e seus irmãos, pretendendo falar-lhe. 47 E disse-lhe alguém: Eis que estão ali fora tua mãe e teus irmãos, que querem falar-te. 48 Ele, porém, respondendo, disse ao que lhe falara: Quem é minha mãe? E quem são meus irmãos? 49 E, estendendo a sua mão para os seus discípulos, disse: Eis aqui minha mãe e meus irmãos; 50 Porque, qualquer que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, e irmã e mãe. Comércio, e não mais do que isso! "Alegria" vivida pontualmente, comprada e vendida a peso de ouro, a avaliar pelos muitos milhões de euros levantados e pagos, em terminais de levantamento ou pagamento automático, nomeadamente pelos portugueses, nos dias que antecedem a tal "festa de família". Uma festa de família que esquece por uns dias a degradação e miséria humana que nos cerca, ou a lembra, igualmente só por uns dias, poucos, qual panaceia mitigadora de fracas consciências. Para Jesus, a família somos todos, todos os dias. Que sensatez, que nobreza ou consciência colectiva ou individual, alimenta, como escreve Faranaz Keshavjee, esta bondade e generosidade que faz ostentação de abundância por um dia e "condena à miséria e solidão nos restantes 364 dias do ano ?" Em nome de que Deus se pode agir assim? Que família é a nossa ? É por tudo isto que tenho cada vez mais dificuldade em me reconciliar com este "natal pequenino" de que todos falam por um dia e esquecem pelos restantes 364. É por isto também que tenho saudades do Natal da minha infância e pré-adolescência. Não recebia brinquedos caros. Mesmo não sendo a "mesa" o centro das atenções, como hoje acontece, também nos deleitávamos, por vezes mais com as "fragrâncias gastronómicas" provenientes da preparação natalícia, do que a quantidade que lhes estava na origem. A oferta até podia não ser muita e a escolha poderia ser ainda menor, contudo havia o estritamente necessário sobre a mesa, e aquilo que temos por necessário, retirando à palavra "necessário" qualquer jogo mental, criatividade "verbal" ou adjectivação subliminar que lhe queiram associar, e em que o espírito humano é normalmente pródigo, não contamina o corpo nem a alma de nenhum cristão, mesmo se ele não consegue chegar com mais do que isso junto da família alargada de Deus. Concordo, minha cara Faranaz Keshavjee, que "é porque Jesus nasceu que todos os dias são dias de fazer Natal, de nos excedermos em boas-obras", mesmo sem que, para concluir isso, seja necessário eu ser muçulmano, ou eventualmente você ser cristã. "Rei morto Rei posto!" Espera-nos agora, dentro de quatro dias, a festa onde todos faremos de conta que somos ricos e temos fartura, num ritual de entorpecimento individual e colectivo prolongado à saciedade, mesmo se à nossa volta a família de Deus agoniza.