Quando eu era menino, ver televisão era uma festa só permitida aos domingos à tarde, para os desenhos animados, e a premiar o facto de ter estado presente no serviço religioso da manhã; eventualmente aos sábados à noite isso também podia acontecer se acompanhado de algum familiar adulto a um dos dois únicos cafés que possuiam aparelho receptor, para ver o Bonanza. A televisão, nessa altura, não oferecia nenhum risco para crianças nem para adultos, até porque, por via de regra, a emissão do único canal televisivo existente iniciava-se ao final da tarde/princípio da noite e encerrava, se a memória não me falha, por volta das 23h-30', mais coisa menos coisa. Tirando isso, só muito excepcionalmente havia emissão fora dessa janela horária nos dias úteis da semana. Normalmente acontecia se o Benfica ( não me lembro se ocorria com outros clubes nacionais) jogava fora para a então taça dos campeões europeus, ou se algum Papa visitava Portugal e ia a Fátima. Também, diga-se, não havia razão nenhuma para que as emissões fossem mais alargadas num país em que não se passava nada e onde aquilo que se passava no estrangeiro, e em Portugal, se nos chegava, era filtrado e acomodado ao que o regime achava que devíamos ver, ouvir ou ler, e daí, sim, vinha o verdadeiro perigo para todos.
Anos mais tarde, não me lembro em que tempo, começaram a ser emitidos os filmes de D.Camilo, um padre católico que exercia o seu ministério numa aldeia perdida algures na Itália do pós-guerra dos anos 40/50. Fizeram as minhas delícias de adolescente. D. Camilo e o seu eterno opositor, Pepone, o autarca comunista, retratavam uma realidade que convinha ao estado novo exibir. Os argumentos de "D.Camilo", tinham um denominador comum: apresentavam a igreja católica como a única força que era capaz de defender os interesses do povo no que tocava a assuntos de toda a ordem, mesmo os mais insignificantes. Por seu turno, e do outro lado da barricada, estava o eterno opositor comunista, personificado em Pepone, cujas atitudes e acções eram diabolizadas e exibidas como capazes de conduzir à perdição do inferno qualquer bom católico e habitante da vila. E tudo naquela terra se passava à volta das aventuras e desventuras de D.Camilo, um pároco que dialogava com um cristo de madeira preso numa cruz dependurada sobre o altar-mor da igreja e do qual recebia conselhos e dicas de como se devia conduzir ( e aos quais raramente atendia ), e de Pepone, o dirigente comunista que pretendia instalar uma "URSS" no microcosmos da pequena povoação Italiana. A luta dos dois oponentes assentava basicamente em saber quem iria alcançar o apoio do povo para os pontos de vista tão antagonicamente apresentados e defendidos de forma radical como sendo os melhores para a vida e ordem da terra.
A história que chegava até nós, contada por cada filme, se vista com o olhar de hoje, era realmente muito naíf, mas de ingénua tinha muito pouco. O que acontecia no ecran era a eterna luta entre o bem e o mal. O primeiro encarnado em D.Camilo e nos valores católicos de então, que eram genericamente comuns a toda a europa do sul, e o segundo corporizado pelo comunista Pepone defensor acérrimo do velho estilo estalinista e de uma contraditória nova ordem que pretendia substituir a velha.
A RTP Memória tem passado nas últimas semanas alguns deste filmes. Gravei e fui revendo conforme a minha disponibilidade de tempo. Não deixo de sorrir, ma já não me divertiram tanto, como é evidente, as aventuras e desventuras de D.Camilo e Pepone, até porque o que alegrava a minha adolescência ingénua de há quarenta anos atrás, cobre-me agora de "ridículo" quando os meus filhos me "apanham" a ver o D.Camilo. O mundo, tal qual o conhecemos hoje, já não é visto como há quarenta ou cinquenta anos atrás. A mensagem maniqueísta que o estado novo pretendia fazer passar nos anos 60 em Portugal, e onde os filmes de D.Camilo assentavam que nem uma luva, ajoelhou perante os ventos de Abril. Volvidas algumas décadas, D.Camilo e Pepone já não encaixam nestes tempos de pós- modernidade, mesmo se traduzem uma velha realidade sociológica que se espraia, nos dias que correm, envolvida na espuma do tempo. O bem e o mal são-nos hoje apresentados veiculados por diferentes e intrincadas manifestações sociológicas, muito mais complexas e estruturadas, de difícil descodificação mas, na essência, a terra que deixa um ou outro germinar continua presente nas sociedades e nos homens do nosso tempo. Afinal, D.Camilo ou Pepone não passam de alegorias que, de uma forma ou de outra, se projectam em todos os tempos, em todas as sociedades, em todas as vivências.
Jacinto Lourenço