quinta-feira, 8 de março de 2012

Fósforos e Gasolina...


Disseram-nos tarde, tarde de mais, quando pouco ou nada já havia a fazer, que tínhamos que mudar de paradigma.

Todos o afirmamos, mas todos sabemos também que os paradigmas, quase sempre, não mudam apenas porque nós temos vontade que eles mudem.

Há não muitos meses atrás, um jovem vendedor ambulante de 26 anos, tunisino, de seu nome Mohamed Bouazizi, suicidou-se imolando-se pelo fogo em plena via pública. Uma tragédia pessoal mas que tinha por detrás muitos outros  milhões de outras tragédias pessoais. Será que o jovem Bouazizi pretendia, com o seu acto de desespero e loucura, dar início a alguma revolução ? Claro que não. Ele estava a protestar, de forma extrema  e utilizando um valor   sagrado e inviolável que é a vida humana, contra uma situação instalada na Tunísia que colocava em causa a sua própria sobrevivência. Cansado de fugir da polícia por vender ilegalmente na rua. Cansado de dar gorgetas aos polícias para não ter que fugir sempre deles. Cansado de não possuir o suficiente para se sustentar e levar a sua vida com um mínimo de dignidade. Cansado de bater a todas as portas para obter uma licença de venda ambulante, que não lhe era passada vá lá saber-se porque razão, cansado de estar cansado e depois de lhe terem confiscado  as parcas mercadorias que tinha para vender e  a balança onde as pesava, tomou a atitude limite de por termo à vida tornando-se numa pira de vergonha para a humanidade.

Não quero aqui dissecar as razões porque entendo que o suicídio não pode ser uma opção para o ser humano, pese embora  seja recomendado em algumas culturas como saída para muitas situações que se prendem com a dignidade humana. Não é isso que me traz aqui hoje. Poderá ser assunto para um dia destes. Mas quero lembrar que, na sequência do suicídio do jovem Bouazizi, começaram de imediato manifestações que, qual rastilho de pólvora, se estenderam também de imediato a toda a Tunísia  abrindo lugar ao acontecimento que ficou conhecido pela Revolução do Jasmim e que foi depoletada pelo facto da generalidade dos tunisinos se identificarem, nos seus problemas e nos problemas do seu país, com Mohamed Bouazizi e na razão dos seus protestos.

Eis como  um simples fósforo e alguma gasolina podem ceifar a vida a um humilde vendedor ambulante, um ser humano cuja única reivindicação era poder viver no patamar inferior da dignidade. Eis como esse simples fósforo pode dar também início a uma mudança de paradigma num país e um pouco por todo o norte de África. Nunca passou pela cabeça de Bouazizi tal coisa, mas a verdade é que aconteceu, mesmo que seja também verdade que, neste preciso momento, nenhum de nós consiga ainda opinar sobre o que se vai passar  nos países atingidos por aquilo a que se chamou posteriormente Primavera Árabe. Mas bastou uma pequena chama para que o mundo Árabe se incendiasse e tudo fosse posto em causa: a vida das pessoas, as famílias, os governos, os exércitos, as políticas a seguir, os direitos e deveres dos cidadãos. 

Lamento profundamente ter sido necessário que uma pessoa tivesse sido levada, pela sociedade, a limites de momentânea ausência da razão e  fazer o que fez Bouazizi, um jovem de 26 anos com muita vida ainda pela frente. Quantos Bouazizi 's mais  irão morrer, de uma ou outra forma, em qualquer lugar do mundo,   para que as sociedades se mexam e se centrem mais nos seres humanos e na vida, e no respeito que esta tem que merecer, e menos naquilo que são os interesses monetaristas de meia dúzia de indivíduos sem rosto ou alma. Este sim o verdadeiro paradigma que interessa sobrepor a todos os outros. 

Mas como vimos, infelizmente, a mudança de paradigma raramente irrompe, ainda que isso seja desejável, apenas  porque nós achamos que sim, que deve irromper. É mais fruto de circunstâncias nem sempre imaginadas, ou até de um pequeno fósforo, riscado por anónima mão, que ateia um rastilho que  há muito secretamente se estende.

Mudar de paradigma na europa? Pois sim, eu acredito que as circunstâncias  actuais tornam isso desejável e um desiderato que todos gostaríamos de alcançar. Ao longo da sua história já foi feito várias vezes e em  muitas dessas vezes o preço pago em vidas e sacrifício humano foi pesado. Mudanças de paradigma não se fazem por decreto, embora sejamos desafiados a tomar as decisões e medidas que concorram para promover essas mudanças. Acontecem simplesmente ditadas pelas circunstâncias que vão sendo criadas, na maior parte dos casos ditadas pelas nossas escolhas ao longo do caminho. É por isso que, mais do que nunca se impõe que as escolhas sejam responsáveis, adequadas e respeitadoras da dignidade humana.

Em algum momento, no futuro próximo, acredito que, se a insanidade dos actuais líderes europeus se mantiver, e eles não pararem para pensar, ou não forem rapidamente substituídos por gente capaz e responsável,  um fósforo irá ser riscado, e isso terá sérias consequências para a europa e para o mundo.


Jacinto Lourenço