terça-feira, 24 de abril de 2012

O Meu 25 de Abril...


O despertador tocou, como habitualmente, às oito e meia da manhã de uma quinta-feira normal de uma semana qualquer. A D.Ilda entrou esbaforida no meu quarto a dizer que tinha havido uma revolução. Lavei-me à pressa, enfiei a roupa e fui, como habitualmente, a pé, do Alto do Pina até à rua Zaire, ali para o pé dos anjos, para a empresa onde trabalhava. Pelo caminho fui observando os rostos das pessoas e as suas reacções. Percebi um misto de esperança e receio. Na Paiva Couceiro alguns  grupos de homens mais velhos conversavam meio em surdina; adivinhei o tema das conversas e continuei a andar. Nunca antes tinha chegado tão rápido ao emprego. No escritório os meus colegas seguiam interessados a emissão da rádio. Ninguém estava a trabalhar. Fomos percebendo, pelas notícias, a realidade do que se estava a passar nas ruas de Lisboa e a intenção dos militares que se tinham sublevado.

O patrão não apareceu naquele dia no escritório e todos decidimos que não iríamos ficar ali da parte da tarde, até porque o nervosismo e a expectativa eram tão elevados que dificilmente alguém iria ser produtivo no que restava daquele extraordinário dia. Fomos para a rua, cada um para seu lado, ver a revolução que estava a derrubar uma ditadura fascista que durava  há  48 anos  e que tinha marcado negativa e dramaticamente a vida da esmagadora maioria dos portugueses.

Desci a rua Zaire em direcção ao largo de Santa Bárbara. Subi para a  rua do Conde de Redondo. De passagem olhei para as portas do quartel da GNR fechadas e sem sinal nenhum cá de fora que indiciasse algum movimento lá dentro. Fui em direcção à Avenida da Liberdade percebendo já nos rostos e nas reacções das pessoas um grande desprendimento e alegria. Toda a gente muito agitada, mas serena ao mesmo tempo. Sem que fosse ainda definitiva a certeza do êxito do golpe militar, observava-se já, ali à frente dos  olhos, a real possibilidade de se poder gritar LIBERDADE a plenos pulmões  e de assistir também ao  extertor de um regime político que se tornara abominável e isso seriam as melhores coisas que podiam ter acontecido aos portugueses e a Portugal no último meio-século da nossa história.

Vi os tanques, os soldados deitados no chão com as suas G3 em prontidão. Pela Calçada do Sacramento descia um pelotão do exército em direcção à Praça do Comércio que, a uma ordem do graduado, puxou a culatra atrás e a soltou a um tempo. O ruído provocado pelas armas intimidou os muitos populares, quase encavalitados nos militares, que debandaram em  atabalhoada corrida  rua do Ouro acima. Por mim, achei melhor seguir dali para fora. O peito dilatava-se-me de alegria à medida que me encaminhava para o quartel do Carmo onde, dizia-se, Marcelo Caetano estava refugiado. Ninguém parecia estar muito preocupado  que as coisas se complicassem e houvesse tiroteio a sério nas ruas. A multidão enchia-as. A vontade de ver cair o regime opressor era mais forte do que os cuidados que se recomendavam numa situação daquelas. O primeiro-ministro da ditadura  já tinha saido do Carmo numa Chaimite quando lá cheguei, mas o largo continuava cheio de pessoas as gritos exultando pela liberdade finalmente conquistada. Os buracos das balas que serviram de aviso à guarda pretoriana do regime, sempre configurada pela GNR, eram visíveis na frontaria do edifício  onde se acoitara Caetano.

Vivi o 25 de Abril de 1974 com muita intensidade. Tinha vinte anos acabados de fazer em Março. Apresentara-me  já  à   inspecção militar e sabia que, como qualquer jovem português de então, o meu destino seria cumprir cerca de quatro  anos de tropa obrigatória sendo dois deles  no então designado Ultramar. Quatro anos na vida de um jovem na casa dos vinte, a cumprir serviço militar obrigatório, eram sem dúvida um tempo de interregno que comprometia  aspirações e punha em causa a própria vida. Muitos fugiam para o estrangeiro para não obedecerem a esse chamamento do regime a uma guerra injusta  que não fazia qualquer sentido. França era o destino mais corrente dos mais politizados, dos que tinham família emigrada ou dos que possuiam suporte financeiro familiar para por lá ficarem o tempo necessário. Eu não me enquadrava em nenhum destes perfis pelo que,  era mais do que certo, iria para o ultramar. Sem dúvida um cenário que apavorava.

Não sendo suficientemente politizado, como aliás se passava com a maioria da população, tinha uma noção perfeita das condições políticas existentes em Portugal e do resultado que isso implicava para a vida das pessoas: ausência das  liberdades mais elementares, perseguições políticas, obscurantismo, censura, prisão, tortura, etc. Na minha família materna havia exemplos de pessoas perseguidas, torturadas, presas sob a acusação de serem comunistas sem que muitas vezes houvesse sequer uma real noção do que era isso, o comunismo. Vivi parte da minha infância e  adolescência a ver o meu avô José a sintonizar a Rádio Portugal Livre, que emitia a partir de Argel, e a Rádio Moscovo. Era a única maneira de se saber o que é que se passava no interior do  país ao nível das lutas de estudantes e trabalhadores contra o regime que todos queriam ver deposto pois os jornais e as estações de rádio e televisão só diziam  aquilo que os censores autorizavam. Enfim, vivíamos sob um  poder que aterrorizava as pessoas e manipulava as consciências de acordo com os seus interesses mais obscuros e foi no meio deste ambiente que se chegou a 25 de Abril de 1974 e à ansiada liberdade. Como não sentir, pois, tanta alegria e satisfação, naquele dia, à medida que ia percorrendo as ruas de Lisboa, pela   liberdade conquistada ?!

Trinta e oito anos depois, os portugueses já não exibem o sorriso daquele dia vinte e cinco de Abril de 1974. O que sobra é apreensão e tristeza. Interrogam-se como é que deixaram que lhes retirassem coisas importantes que Abril lhes deu. Desconfiam que não conseguirão readquirir  o sorriso e a alegria que lhes roubaram neste percurso de quase quatro décadas de liberdade ...


Jacinto Lourenço