Nos anos 20 do século passado, Louis Bolk avançou com a teoria da neotenia, posteriormente seguida e aprofundada por biólogos e filósofos. Constata, no essencial, que o Homem é um prematuro - para fazer o que faz, precisaria de permanecer no ventre materno mais um ano, mas isso não é possível; assim, nasce no termo de 9 meses, em vez de passados 20 -, tendo, portanto, de receber por cultura aquilo que a natureza lhe não deu. Frágil segundo a natureza e sem especialização, tem de criar uma espécie de segunda natureza ou habitat, precisamente a cultura. Como escreve o filósofo Robert Legros, "é na cultura ou no que a fenomenologia chama um mundo que a humanidade de Homo encontra a sua origem, e não na natureza. Quanto à origem da cultura, ela está por princípio votada a permanecer uma questão sem resposta".
Enquanto os outros animais nascem feitos, o Homem, nascendo por fazer, em aberto, tem de fazer-se a si mesmo e caracteriza-se por essa tarefa de fazer-se com outros numa história aberta, em processo.
Constata-se deste modo que nos fazemos uns aos outros genética e culturalmente. Os meninos--lobo mostram-nos que nos tornamos humanos com outros humanos. Eles tinham a base gené- tica de humanos, mas faltou-lhes o encontro com outros homens. O ser humano é, pois, sempre o resultado de uma herança genética e de uma cultura em história.
Assim, no processo de nos fazermos, o outro aparece inevitavelmente. O outro não é adjacente, mas constitutivo. Só sou eu, porque há tu, em reciprocidade. O outro pertence-me, pois é pela sua mediação que venho a mim e me identifico: a minha identidade passa pelo outro, num encontro mutuamente constituinte.
Repare-se, porém, como, analisando o étimo de encontro, aparece não só esta relação constituinte, mas também a indicação de embate e contraposição, assinalados no "contra" da palavra encontro, que aparece igualmente no espanhol "encuentro", no francês "rencontre", no italiano "rincontro", no alemão "Begegnung", com a presença de "gegen", que significa contra, precisamente.
Então, o outro é vivido sempre como fascinante e ameaça. Os gregos, por exemplo, chamavam bárbaros aos que não sabiam falar grego, mas tinham fascínio por outros povos, concretamente pelos egípcios.
O outro é outro como eu, outro eu, e, simultaneamente, um eu outro, outro que não eu. Daí, a ambiguidade do outro. O outro enquanto outro escapa-se-me, não é dominável. Nunca saberei como é viver-se como outro. Quando olhamos para outra pessoa, perguntamos: como é que ela se vive a si mesma, por dentro?, como é que ela me vê?, como é o mundo a partir daquele foco pessoal?
Porque é simultaneamente, tanto do ponto de vista pessoal como grupal e societal, um outro eu e um eu outro - outros como nós e outros que não nós -, o outro atrai ao mesmo tempo que surge como perigo possível. Há, pois, uma visão dupla do outro, que tanto pode ser idealizado - no amor, é divinizado -, como diabolizado. Atente-se na ligação entre hospitalidade e hostilidade, que derivam do latim "hospite" e "hoste", respectivamente. Cá está: o outro é hóspede, por exemplo, no hotel e no hospital. Mas, no hotel, que em inglês se diz "hostel" e em espanhol "hostal", em conexão com hostil, pedem-nos, por cautela, a identificação. E a fronteira, porta de entrada e de saída, em ligação com fronte - a nossa fronte somos nós voltados para os outros e ao mesmo tempo ela é limite e demarcação de nós -, anuncia o outro - outro país - e é espaço de acolhimento e também da independência.
No quadro desta ambiguidade, entende-se como, por medo, ignorância, desígnios de domínio, se pode proceder à construção ideológica e representação social do outro essencialmente e, no limite, exclusivamente, como ameaça, bode expiatório, encarnação e inimigo a menosprezar, marginalizar, humilhar e, no limite, abater, eliminar.
Num mundo global, cada vez mais multicultural e de pluralismo religioso, é urgência maior repensar a identidade e avançar no diálogo intercultural e inter-religioso.
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Fonte: Prof. Anselmo Borges in Diário de Notícias Online