segunda-feira, 19 de abril de 2010

«QUAIS...?»

A primeira pergunta referencial sobre os acontecimentos históricos da paixão, morte e sepultamento do Messias, veio de Quem menos se esperaria. Veio do próprio Jesus Cristo ressuscitado. Tal pergunta está no contexto da interactividade da narrativa lucana ( Luc 24,19) que nos apresenta uma das mais belas passagens pós-ressurreição do Amado. Essa passagem do Evangelho junta o sobrenatural de uma forma tão singela, tão esbatida num ambiente simples de um encontro de caminheiros no meio das sombras de um provável fim de tarde, tão cheia de nostalgia, tão apelativa da curiosidade do leitor. A aproximação daquele viajante, longe de distrair os discípulos solitários, mais ainda os comoveu. Começou por lhes tocar na corda da sensibilidade, lhes fazer recontar a história que as suas palavras trocavam entre si, uma história triste sobre o destino de alguém. Nada tinha de simbólico, nada possuía de quotidiano. Parecia ser, também, a história de um herói e sobre a mediocridade dos homens. À estranheza dos dois discípulos, Cleopas e outro inominado, que caminhavam imersos em tristeza psicológica e, de certo maneira, religiosa, correspondeu uma não menos estranha pergunta: -«És tu só peregrino em Jerusalém e não sabes as coisas que nela têm sucedido nestes dias? -«Quais?», devolve Jesus Cristo a pergunta. E, antes da resposta dos chamados discípulos de Emaús e da explanação histórica e das Escrituras sobre os acontecimentos, por Quem os conhecia afinal pelo seu lado interior, pelo âmago profético e divino, vejamos o conteúdo que se nos oferece na indagação «Quais?» «Quais?» Jesus Cristo está diante da natureza humana. Está perante o que se poderia designar como o momento em que, para aqueles dois discípulos judeus já nada parecia fazer sentido. É dos piores, esse momento, determinado pelas dúvidas que se sucedem e não dão tréguas, pelos sentimentos que correm em tropel. O desânimo chega porque um sonho, uma expectativa, uma quase certeza se goraram, ou uma fé se perdeu. Esta indagação «Quais?», porém, não nos remete para o silêncio e a solidão das coisas sem resposta. Pelo contrário, descobre-nos a existência de pontos de vista díspares. E das dimensões opostas da visão sobre os acontecimentos. Os dois de Emaús tinham a notícia, haviam sido testemunhas presenciais, possuíam a sua resposta ao acontecimento passado havia poucos dias, o seu ponto de vista era o contingente. Remetia-os para a unhope ( “esperar na desesperança”) que acabaria por fazer escola na transição do século XIX para o XX com um ou outro escritor pessimista radical (1). As evidências pareciam confirmar-lhes a frustração: “ E nós esperávamos – esta afirmação carrega em si toda a carga de um drama de quem esperava mesmo qualquer coisa – que fosse ele o que remisse a Israel; mas, agora, com tudo isso, é já o terceiro dia desde quer essas coisas aconteceram” (op.cit. 24,21) Toda a problemática do homem moderno, na sua vida, na sua religiosidade, na sua espiritualidade, aí está reflectida na atitude dos discípulos de Emaús. Estavam a deixar-se esmagar pela impiedosa máquina do que parece ser, do que aparentemente a história parecia determinar. «Quais?» Confrontaram-se, contudo, com um viajante ocasional, no começo da narrativa de Lucas, que com o decorrer da viagem se foi tornando essencial, peregrino aparente que parecia desconhecer as contingências da história, não conhecer os eventos, mas que possuía a versão absoluta, meta-histórica, do conjunto de acontecimentos desses três dias últimos. A interpelação de Jesus aos companheiros de viagem não se situava na zona escura do desconhecimento, nem estava na área gramatical das figuras de estilo; assim como o pensamento grego pressupunha sempre uma conduta, a língua grega que Lucas utilizou também. O pronome «quais?» ( Poios, Poia, adj.pronominal interrogativo ), inquiria sobre o carácter das coisas que aconteceram, o modo de ser das mesmas, e não o aspecto quantitativo. A quantidade de diálogo estabelecido entre Jesus e os dois discípulos, esteve muito mais do lado destes. Responderam a esse inesperado companheiro com todo o rigor da história recente. Deixaram transparecer um vislumbre de esperança sustida e demarcada pelo machismo ( «É verdade que também algumas mulheres dentre nós nos maravilharam...dizendo que tinham visto uma visão de anjos» 24,22), quando ouviram que o sepulcro estava vazio. Mas ficaram por aí. Na exiguidade da história, no constrangimento que se produz quando se espera ter algo ou alguém para ver, e tal não acontece, no esperar nos outros que nos relatem o que viram ou não viram, residia agora o estado de animo dos dois de Emaús. Disseram, do fundo da alma entristecida, e não se sente nas suas palavras desconfiança, que alguns foram ao sepulcro e confirmaram a informação das mulheres, «porém, não O viram» ( 24,24). Uma simples e formal constatação de um facto. Também um conformismo. Vê-lO, naquela circunstância de sombras e desânimo, seria importante para eles. A dúvida, o sentimento de orfandade, contagiavam. O olhar e o tocar ainda se sobrepunham à Fé. Não terá sido para lhes resolver esse problema, tirando-os do conformismo e da dúvida, que o próprio Senhor ressuscitado se juntou a eles, no caminho para Emaús? Em que plano dos eventos aquele viajante misterioso colocou as Suas palavras perante ouvidos tão atentos? E corações tão prontos para deixarem de ser glaciais? «E Ele lhes disse:» As primeiras palavras foram de suave reprimenda ( Ó [original letra ómega] néscios..) e de pedagogia, para salientar a necessidade de estarem atentos ao plano profético dos eventos. «Tudo o que os profetas disseram», compunha o absoluto das «coisas» que tinham ocorrido. O próprio Cristo falando de Si retoma todo o conceito profundo «dessas coisas», que qualifica de padecimentos, e assim as liga ao Seu sacrifício vicário pelos homens, à Sua paixão, morte e sepultamento, culminadas – Aleluia!- pela Glória - a Glória de Ser o Que É e a Glória de Estar ressurrecto. Na narrativa que Lucas utiliza, o versículo 27 é um simples prólogo, diria muito ao modo grego, para resumir toda uma acção que toca no mais profundo lugar da alma dos dois de Emaús. A explicação que Cristo lhes foi a facultar pelo caminho, não era sobre os acontecimentos, isso seria história, tida como contingente, era sobre Si próprio, acerca do que sobre Ele se achava nas Escrituras – logo, era sobre o essencial, o absoluto eterno que É o Filho de Deus. Que palavras podem fazer arder o coração? Senão as palavras, as logias que Jesus foi tirando de dentro de si próprio para as colocar no coração dos homens? Mas se não bastassem as palavras, houve ainda assim o gesto, a atitude do partir do pão e de dar o mesmo aos anfitriões da casa onde se recolheu da noite. Jesus Cristo ressuscitado É isso: Luz para o entendimento, Pão para a fome espiritual, Palavra para conhecer os domínios de Deus. Jamais 2,5 quilómetros (60 estádios) foram tanta universidade bíblica, tanta sinagoga, tanto Templo de Jerusalém, para o ensino que Jesus Cristo foi transmitindo, tendo iniciado o mesmo por Moisés e feito o percurso bíblico por todos os profetas. Explicou-lhes o sentido profundo dessas coisas. Da Sua Vida, Morte e Ressurreição. Perante o efémero da história, que parecia dominar as circunstâncias, estava ali o Permanente.
***
(1) Thomas Hardy, poema De Profundis
***
João Tomaz Parreira