Vi, pela "enésima" vez, o filme "Cinema Paraíso" . A minha esposa perguntou-me sobre o que é que tratava; respondi-lhe que da nossa infância, da nossa adolescência, do nosso passado. Então mas a acção não se centra no sul de Itália ? Sim, claro. Mas quem nasceu e vive em qualquer outro país do sul da europa, identifica nas cenas, diálogos e comportamentos das personagens exibidos em "Cinema Paraíso" um registo único, uma idiossincrasia que é comum, um género de marca de água que resiste à escrita por cima, que é observável e identificável nos traços mais essenciais.
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Cinema Paraíso perpassa vivências de décadas em poucos minutos. Quando observamos a sua projecção, sentimo-nos a fazer parte do filme, num misto de alegria e nostalgia. É a nossa vida que está na tela a ser exibida sem nenhum pudor. Maneiras de sentir, de ver, de viver, de sonhar. Anseios, desvarios, pequenas tragédias, conquistas ou realizações, intrigas, trabalho, relacionamentos, diversão, desilusão, paixões; e tudo isto à escala de uma pequena vila do interior isolado onde as vidas de toda a gente se cruzam numa interdependência difícil de contornar e onde os acontecimentos mais importantes são a chegada diária da camioneta da carreira e a sessão semanal de cinema.
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O ritmo marca o tempo e as intermitências da vida dos habitantes que escorre, sempre lenta, qual areia em ampulheta, para novos e velhos, como uma pena que se cumpre e em que a libertação só é conseguida pela aventura da evasão.
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É isto, Cinema Paraíso; a nossa vida na tela, ali, onde todo o pulsar colectivo se esbate derrotado pela chegada e voragem do novo.
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O funeral de Alfredo, que cegou no incêndio da cabine de projecção, passa em frente do Cinema Paraíso. O séquito faz uma paragem no largo principal frente ao edifício em ruínas, num último tributo ao velho projeccionista. Lá está Tótó, ou melhor, Salvator de Vita, homem adulto, citadino que não renuncia as origens, mas que se fez realizador famoso em Roma no cumprimento de uma "professia" de Alfredo, seu grande amigo, mestre e conselheiro. Mais do que o funeral de Alfredo, é um modo de vida e uma cultura que morrem com ele e o seu cinema.
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Cinema Paraíso mostra a vida difícil no interior das pequenas povoações do sul da Europa, entre os anos cinquenta a setenta, marcada pela pobreza dos seus habitantes, pelas doutrinas da igreja católica, pela presença amedrontadora das "forças da ordem" e pelo domínio dos caciques políticos e administrativos locais. Mas mostra também a vivência simples e despreocupada pautada pela proximidade entre as pessoas ainda não permeada pelos problemas das cidades grandes.
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Salvaguardando eventuais pequenos excessos e cáusticos momentos, próprios da produção de qualquer filme, quando regresso a Cinema Paraíso, regresso a casa e à pacatez da minha vida de rapaz provinciano. Regresso à vida de um país, a uma região que me viu crescer e me marcou a infância e adolescência, que me alimentou, como a Salvator, de sonhos com mil aventuras.
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A demolição do Cinema Paraíso, num estertor envolvido por pedras e pó, lembra-nos o fim de um ciclo em que a felicidade se fazia de pequenos nadas, pequenos gestos e grandes sonhos.
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Cinema Paraíso diz-nos, como Gedeão, que o sonho comanda a vida. E era só isso que nós tinhamos, no sul de Portugal, como no sul de Itália, em Giancaldo nos anos 50 a 70 do século XX.
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Cinema Paraíso é um filme que nos transmite uma mensagem subliminar e intemporal. Assim a saibamos entender. Mas é também uma película que mostra como se faz grande cinema com um elenco sem estrelas numa história simples, comovente e belíssima, embalada numa música de Morricone.
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Jacinto Lourenço