quinta-feira, 15 de outubro de 2009

"A Breve imortalidade do Nada em Álvaro de Campos"

A consciência da finitude nos angustia justamente porque somos habitados por um senso de eternidade. Esse paradoxo é descrito de maneira magnífica por Álvaro de Campos, pseudônimo de Fernando Pessoa, em seu poema Tabacaria: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”A palavra “espiritualidade” expressa esse encontro entre o finito e o infinito nas profundezas do ser humano.
Ed René Kivitz (citado em Ab-Integro, de J. Lourenço)
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«Não sou nada, sou uma ficção». Quem afirmou isso foi a mesma pessoa, fictícia, criatura heterónima, que escreveu o seu retrato como uma análise certeira sobre si próprio, como se fora um psicólogo e um antropólogo, existencialista avant la lettre : “Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada». À parte isso dizia ter em si todos os sonhos do mundo.” Quem isto disse, foi uma personagem desdobrada. Esta frase não tem sido bem entendida, especialmente por teólogos ou escritores cristãos – e.g. Ed René Kivitz: pseudónimo não é heterónimo, já agora - que vêem nela uma espiritualidade, um contraponto entre o finito e o infinito. Em Álvaro de Campos, os sonhos eram a substância da espuma do mundo. Nenhum homem foi menos onírico do que o heterónimo de Pessoa. O nada para Álvaro de Campos era mais do que uma categoria filosófica, ou um vazio teológico a partir do qual Deus criou, era uma forma de reacção: “Não: Não quero nada. Já disse que não quero nada.” E termina a dizer o que é a completa negação da eternidade, ou pelo menos de um pensamento sobre o eterno: «E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!». “A única conclusão é morrer» (do mesmo poema acima) põe todos os pontos nos iii à conclusão de um crente na imortalidade. Não era. Pelo menos nos heterónimos. Ricardo Reis que vem da sabedoria clássica, pensaríamos então que do gnosticismo, retoma a ideia do Nada como a morte física; «Tudo que cessa é morte, e a morte é nossa». Ter em si todos os sonhos do mundo é, no sentido do heterónimo pessoano, ter todas as sensações e «sentir tudo de todas as maneiras». A acreditar neste ecletismo, ou pior, sincretismo de sensações, que nos leva ao sensacionismo poético que era a escola estética do Poeta, acreditaremos noutras afirmações poemáticas que são megalómanas, ou no mínimo hiperbólicas: « Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito –hipotético mais humanidades do que Cristo.» O prof. Jacinto do Prado Coelho colocou o cerne da pretensa espiritualidade no poeta ortónimo e heterónimos, deste modo: «Entendamo-nos sobre o sentido da busca espiritual em Pessoa. Quando se multiplicou nos heterónimos, o autor já decerto sabia que não ia encontrar uma resposta cabal para as suas interrogações sobre o enigma do eu e do mundo. Estava já(…) dividido entre a intuição que crê e a razão que nega, desiludido, sem esperança». Antes mesmo dos existencialistas, estava já enclausurado no absurdo.
J.T.Parreira