quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Comer Todo o Chocolate do Mundo

Chegamos ao fim de um ano civil, em 31 de Dezembro, de acordo com o calendário gregoriano que nos marca o compasso do tempo, e só temos uma possibilidade: "continuar em frente", para o ano seguinte. Hoje estamos a viver o último dia do ano da graça de 2009. Amanhã estaremos em 2010. Isso muda alguma coisa na nossa vida para além de nos acrescentar mais um ano ? O mais provável é que não, que não mude grande coisa. Quando o ponteiro dos segundos vencer, no mostrador do relógio, a última barreira das 24 horas deste dia 31, mais logo à noite, os tempos, ou melhor, o tempo, não irá assumir diferente notoriedade. As clivagens do tempo são vincadas por aquilo que esse tempo comporta e não o contrário. Ou seja: o tempo não é um Absoluto; Absoluto é aquilo que nele ocorre. Minuto atrás, minuto à frente, não é isso que fará qualquer diferença na nossa vida. Quando eu era criança, queria que o tempo passasse rápido para poder atingir, mais veloz, outros patamares que me fizessem escapar às restrições e penalidades que os adultos "infligem discricionariamente" à miudagem. Pode ser uma visão redutora, mas não para um miúdo de sete, oito ou mais uns poucos anos. Chegar ao topo, não ter que cumprir ordens dos adultos, poder ser dono do meu nariz, comer todo o chocolate do mundo entrecortado por laranjadas, gasosas ou pirolitos ( para aproveitar os berlindes destes - um luxo de abafador para qualquer catraio da minha infância ) e comprar todos os brinquedos que me apetecessem; não me deitar quando me mandassem mas sim quando eu quizesse. Praia, jogo da bola, passeios; enfim todo um fartote de brincadeira e de jogos. Era o que eu pedia e queria da vida nessa altura. Escola ? Venha o primeiro dizer que a preferia aos jogos de pião, às correrias no recreio ou a uma boa futebolada a acabar aos doze e mudar aos seis. Nenhuma aritmética, verbos ou geografia eram moeda de troca suficientemente aliciante face à glória de ser sempre jogador incondicional na perspectiva de ocasionais seleccionadores que disputavam a sorte ditada pela sobreposição do pé imposta na contagem dos passos definidos, para poderem escolher, em primeiro lugar, o melhor de todos os jogadores. Mais relevante que tudo isso, para mim, só a carrinha da Gulbenkian que, qual ave de arribação, chegada na primavera do dia esperado, pousava no largo do Coreto, religiosamente, a cada 15 dias e em cujas prateleiras , repletas de leituras , eu me perdia, por largos momentos. Só isso, mais os seis livros que podia levar para casa por mais 15 dias, ou eventualmente o Super-Rato, ao domingo, me amansavam a rebeldia da infância e me faziam dar folga a todas as outras ocupações de menino ladino. As idades que o tic-tac do relógio foi levando, ao ritmo do rasgar das páginas do calendário, tiveram, cada uma delas, interesses diferentes e expectações diversas, mas balanços de vida eram coisa que o passar dos anos não me propunha nessa altura. Eu achava que o mundo, as estrelas, o céu, se não me pertenciam, eram pelo menos meus cúmplices em jogos que nenhum tempo podia vencer ou devorar. Eu saía sempre vencedor. Só o relógio e os anos no calendário me queriam mal por passarem tão devagar; e logo quando eu queria era crescer rápido por entre aventuras dos Cinco, dos Sete ou dos Nove, para além de todas as restantes histórias que o senhor motorista da carrinha da Gulbenkian me permitia viver nesses verdes anos de sonho, mergulhado em páginas e páginas puídas pelo tempo, pelo uso e pelos quilómetros percorridos de aldeia em aldeia, vila em vila. Hoje, prestes a submeter-me ao balanço torpe do ponteiro dos segundos que me obrigará a uma ( presumível ) viagem no futuro de mais um ano civil, constato que calendários e relógios, continuam a não ser meus amigos, mas pelas razões opostas às da minha infância, adolescência e juventude. Hoje, preferia que eles não se desdobrassem com tanto afinco e pressurosamente nas suas tarefas e que não me galopassem tão avidamente na pista dos anos. É que chegar ao "final" não é, para mim, uma questão de vida ou de morte, até porque o tempo é um valor etéreo, a eternidade e o céu, o firmamento e as estrelas, continuam a ser meus, agora por herança do meu Pai Celestial. Não penso já que os mereço apenas porque sou criança, adolescente ou jovem, ou até porque possa ser, eventualmente, um adulto muito responsável e certinho, que faz tudo muito bem feito e que tira o chapéu ao tempo sempre que ele passa por mim, que o respeita como se ele fosse um pequeno deus ou até um ditador impiedoso e temível a quem tenha que se dar oferendas para que ele nos destine só coisas boas e agradáveis. Não, não se trata disso, e também nem sequer se trata de eu ainda achar que tudo é meu só porque eu quero que seja assim ou porque tenho o direito de o exigir assim e pronto. O céu é meu, porque me foi dado por herança através da Graça de Deus e da vitória de Jesus Cristo no Calvário, por mim. Ali, na minha Pátria Celestial, diz a Palavra de Deus, a Bíblia Sagrada, o tempo não é um Absoluto, Absoluto é o Senhor Deus. Senhor dos Céus e da Terra. Ali, não mais me preocuparei com o tempo, esse devorador de verdes anos. Não vou usar relógios nem pendurar calendário na parede.
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Jacinto Lourenço