segunda-feira, 28 de junho de 2010

"LAVRE - Uma Família do Alentejo" - prefácio de José Saramago

Nasci em Lisboa, mas cheguei à pequena vila de Lavre, no Alto Alentejo, pelos meus seis anos de idade. Era a terra de origem duma parte da minha família materna. Não era o caso dos meus avós maternos, que eram ribatejanos, de Canha e Santana do Mato, mas foi ali, em Lavre, que sedearam cedo a sua vida. Lavre era por essa altura uma pequena vila sem nenhuma importância no mapa sociológico do Alentejo a não ser a que localmente lhe era emprestada pelo bulício próprio do regresso do trabalho, de homens e mulheres, ao sábado, no final da tarde, após uma semana dura a que a agricultura e os campos se tinham encarregue de sublinhar a rudeza com que tinham que ganhar um salário que não dava para ir além de um "avio" semanal, feito nas escassas lojas do comércio, onde as dores da labuta e da vida se inscreviam em colunas de contas a débito de suor e lágrimas de quem se desgastava, a ferozes golpes de desumanidade, numa terra que não era sua. Uns poucos privilegiados faziam a sua vida dentro de portas, na povoação, exercendo um ofício que os poupava ao trabalho no campo e que, sem serem ricos, sempre lhes permitia uma maior desafogo material. Depois havia os muito ricos, senhores da terra, e os que gravitavam no seu círculo mais próximo, como os comerciantes, ou os pequenos ou médios ceareiros sem terra que, vivendo razoavelmente confortáveis do trabalho dos assalariados e das colheitas em anos favoráveis, preferiam, em muitos casos, a companhia dos que socialmente se situavam numa escala mais elevada. Os pobres, esses, ou se perdiam entre copos acompanhados de ervilhanas, ou conviviam com os companheiros de labuta nas três ou quatro tabernas existentes. O único café digno desse nome, existente, era para frequência dos mais endinheirados ou da elite social da terra. As mulheres recreavam-se na frequência das missas ou na assistência aos programas na televisão do padre, quando o gerador eléctrico que a alimentava estava de bons modos; se não estava, e o sr. Fortunato não o conseguia espevitar, limitavam-se às suas casa e afazeres ou, na melhor da hipóteses, a conversas de vizinhança na soleira da porta. Genericamente, Lavre era isto, se descontarmos a festa anual onde alguns procurava esquecer, afogando-se no álcool, por algumas horas, as agruras duma existência sem grandes expectativas de futuro castigada ao ritmo das repetições do sol que lhes marcava o viver sofrido nas carnes secas e cavadas de profundos sulcos em que se escondiam os anos da sua vida. Fugiam a esta sina os homens mais jovens que iam para fora, para as sedes de concelhos límitrofes, ou a engrossar os magotes de operários da cintura industrial de Lisboa; as raparigas, muito novas, eram resgatadas ao cenário agreste do trabalho do campo por senhoras "finas" que apareciam na vila à procura de criadas de servir, internas, pagas quase sempre só pela comida, pela farda e pelo tecto dos patrões, num regime pouco menos que esclavagista, pontualmente contrariado por senhoras/patroas um pouco mais humanas ou condoídas da miséria aviltante das famílias das suas criadas.
Saí de Lavre , novamente para Lisboa, por volta dos doze anos de idade, em 1966, voltando pouco mais tarde mas por curtos espaços de tempo. Aos dezassete perdi, praticamente por completo, a minha ligação à vila, aquando do falecimento da minha avó Gertrudes Serra. Foi por isso que nunca me cruzei com José Saramago nas suas deambulações em Lavre.
Em criança e adolescente, enquanto por ali me mantive, nunca tive grande consciência das aventuras e desventuras do meu tio-avô João Serra, irmão da minha avó Gertrudes. A única coisa que guardo da memória sobre ele, na minha infância, resume-se ao convívio normal de família, à sua casa, a mesma casa onde José Saramago entrou e lhe foi apresentado, e de onde saiu sobraçando uma quantidade de cadernos em papel almaço, manuscritos com memórias de uma vida. Como a minha avó Gertrudes, o meu tio-avô João Serra era uma pessoa dócil e humilde de trato. Precocemente envelhecido pelo tempo e pelo trabalho duríssimo no campo. Poucos lhe conheceriam outra actividade que não fosse a dedicação à família e ao trabalho para a poder sustentar. A revolta pela semi-escravidão em que não só ele mas todos os assalariados alentejanos viviam, calava-a dentro do peito e guardava-a para conversas mais intimistas e clandestinas. Falar de política ou do governo era nesse tempo uma actividade proibida e altamente perigosa para a integridade física de quem o ousasse, a não ser que fosse para dizer bem ou elogiar a porrada cega distribuida pela GNR local a quem era convidado a visitar o posto mesmo que fosse apenas pelo "delito" de apanhar uns gravetos para o lume quando o frio apertava no inverno. É por isso que guardo somente a noção, muito difusa, de ouvir dizer que o meu tio-avô João Serra esteve preso em Lisboa, nada mais. O medo que a GNR e a PIDE representavam para as pessoas era tanto que alimentava mitos como por exemplo o de que aquelas entidades dispunham de equipamentos para poderem detectar na vila quem ouvia programas de rádio proibidos, como o "Rádio Portugal Livre" ou o "Rádio Moscovo", o que levava o meu avó José Lourenço a ouvir rádio, e os ditos programas, muito em surdina, no seu velho aparelho com ondas-curtas e todos sentidos alerta para eventuais movimentos estranhos na rua, perto de casa.
Lavre marcou indelevelmente, de forma muito positiva, a minha vida, para sempre. É por isso que tudo o que lhe diga respeito me interessa. É por isso que quando foi publicado o romance de José Saramago, "Levantado do Chão", e eu vi ali vertida um pouco da história de parte da minha família materna, com relevância, naturalmente, para a família directa do meu tio-avô João Serra, mas onde se incluia também a história de vida dos meus avós maternos, em particular da minha avó Gertrudes Serra, me enchi de orgulho. Afinal, a vida sacrificada dos homens e mulheres do Alentejo, e em especial da minha família materna, estava agora justamente retratada naquele romance, muito fiel aliás, ao que eu tinha lido das memórias do meu tio-avô João Serra. Tão fiéis eram, que não tive nenhuma dificuldade em identificar qualquer personagem ou as suas vivências descritas no romance de Saramago.
Ficou-me no entanto, sempre, o sabor amargo pelo facto do autor de "Levantado do Chão", José Saramago, não ter feito menção mais alargada sobre o que estava e quem estava na origem daquele seu romance, tão próximo que era, afinal a história da realidade. Apenas um agradecimento a João Serra, entre outros nomes, era o que constava na edição que tenho há muitos anos em meu poder. Mas João Serra, em minha opinião, devia ser mais do que um nome perdido no meio de outros nomes a quem Saramago agradeceu. Afinal de contas, foi de casa do meu tio-avô João Serra que Saramago levou as memórias manuscritas, como ele próprio viria a afirmar, que deram origem ao romance que acabou por o lançar e projectar como o grande escritor em que viria a tornar-se, reconhecido mundialmente e o único prémio Nobel da Literatura que Portugal tem.
Achei sempre que não teria ficado mal a José Saramago, ou ao seu editor, terem feito essa pequena justiça à vida de João Serra e dos assalariados alentejanos e da vida no Alentejo nas décadas anteriores ao ano de 1974. Como é óbvio isso nunca retiraria valor nem mérito cultural, literário ou pessoal a José Saramago, um autor marcante na vida literária portuguesa, europeia e mundial.
Esperei sempre que esse gesto de justiça fosse um dia feito por José Saramago. A dimensão humana e literária do escritor e a memória de João Serra, mereciam-no.
Três dias antes de saber da notícia da sua morte, ao entrar numa livraria, repousei os olhos num pequeno livro de capa branca com o título em letras garrafais: "LAVRE - Uma família do Alentejo". Autor: João Domingos Serra. Prefácio de José Saramago numa edição da "Fundação José Saramago". Folhei o livro, li algumas pequenas partes. À noite, em casa, de um fôlego, li tudo. "Reconciliei-me" ali, do ponto de vista da justiça, com José Saramago. Ainda bem que o fiz pois três dias depois ele faleceu.
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Jacinto Lourenço