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Mas lembrei igualmente a minha infância e as gratas recordações que dela guardo. Marcou a minha vida para sempre. Trouxe ao meu carácter muito daquilo que sou hoje. Mas lembro-me principalmente da liberdade e felicidade que me proporcionou. Não me lembro de ter tido falta de alguma coisa que fosse essencial. Lembro-me de “apertos” pontuais motivados por falta de trabalho e, portanto, de dinheiro em casa. Mas lembro-me também da criatividade dos adultos para suprir as necessidades que o dinheiro não podia comprar : hortas, criação caseira de porcos, galinhas, ovos, etc, para consumo.
*** Não tive brinquedos caros . E, diga-se, brinquedos de compra, era algo a que só a festa anual da vila dava acesso depois de um ano inteiro a juntar todos os tostões que arrecadava dos “mandados” que fazia a vizinhas e dos 12 jornais, 9 “ O Século” e 3 “Diário de Notícias” , que entregava aos seus destinatários por conta do Sr. José Alfredo da taberna. Para além da broa de milho que recebia diariamente por esse serviço, “caiam” ainda dez tostões lá de longe a longe. Se a isto juntarmos as encomendas recolhidas na “camioneta das 11” ou na das “6”, da então “A Ribatejana”, e entregues, após "rateio" entre a criançada para delimitar direitos de entrega, nas lojas do sr. Armando Veiga, “Pincó” ou João Peça, entregas que podiam render entre 5 e 15 tostões, conforme o destinatário fosse mais ou menos generoso, então está encontrado o magro pecúlio amealhado até à festa anual e que dava para comprar uma daquelas “camionetas” de madeira pintada de atractivas cores berrantes, e que me davam assim como que um “status” elevado no meio dos colegas de infância que não as podiam comprar. Custavam 5 escudos as pequenas e oito escudos as grandes. Nunca consegui ter uma das grandes… e os meus olhos de menino tantas vezes nelas se dependuraram... Mas também porque ao longo do ano nunca quis abdicar de gastar alguns escudos em bonecos da bola ( vinham embrulhados num rebuçado e, cada dois rebuçados, era um tostão ) para colar na caderneta. O Eusébio era o mais difícil… pelo meio bebia também umas laranjadas, gasosas e outros tantos pirolitos; estes traziam entalados no gargal uns berlindes que a miudagem retirava para depois jogar com eles, sim porque comprá-los estava fora de questão. O resto das economias ia-se nuns piões de guita, uma ou outra quarta de amêndoas pela páscoa, nuns “Condores”, “Ciclones” ou “Mundos de Aventuras”, os livros de banda desenhada do meu tempo, daqueles a que ainda tínhamos que separar as folhas com uma navalha, que era coisa que qualquer catraio que se prezasse trazia sempre no bolso sem nenhum outro objectivo que não fosse o de ver na “naifa” uma ferramenta indispensável para fabricar brinquedos e brincadeiras. E não me ocorre nenhuma situação em que alguma vez tenha passado disso mesmo. Sim, porque fabricar brinquedos era a única alternativa que se afigurava para quem não os podia comprar, o que era o meu caso e o da generalidade de todos os outros miúdos da minha idade.
*** Fabricar brinquedos, e inventar brincadeiras eram a nossa especialidade. Aprendiamos uns com os outros ou com os adultos em casa, à noite, à lareira no inverno ou ao luar de verão, sentados nuns poiais à porta de casa em alegres jornadas de convívio com os vizinhos, ouvindo e aprendendo dos mais velhos, por entre estórias de vida desfiadas ao ritmo de fugazes estrelas cadentes que cruzavam a abóboda celeste.
*** Escola, uma responsabilidade incontornável a que éramos chamados. Escola a sério, em que o professor ensinava e os alunos aprendiam mesmo que algumas vezes sob uma ou outra ponteirada ou reguada . Só servia para isso, a escola, na minha infância, e para formar para a vida à qual seriamos chamados mais tarde. Hoje, pelos vistos, serve para muitas outras coisas, e onde o acto de ensinar e aprender não são o mais relevante.
***Algumas crianças eram ainda chamadas a ajudar os adultos nalguns afazeres. Nunca ninguém me obrigou a isso. Fazia-o, sei hoje, por querer ser útil e por isso me ocupar algum tempo disponível ou eventualmente quando não me apetecia uma brincadeira depois de completados os deveres escolares. Sei que para alguns da minha idade, o trabalho não assumia apenas carácter voluntário, mas também não me consta que ajudar a família em algumas tarefas as tivesse molestado ou comprometido no seu desenvolvimento ( não estou a falar aqui da exploração do trabalho infantil, que isso é outra questão e infelizmente vergonhosa ). O Trabalho, no período da minha infância, era um valor formativo, tal como a escola e as brincadeiras.
*** Acho que quando Jesus ordenou que deixassem que as crianças fossem até Ele, naquele momento lembrou-se certamente da sua infância, da sua meninice, parecidas provavelmente com a minha, salvaguardadas as devidas distâncias, nomeadamente as espirituais, culturais e civilizacionais. Lembrou-se Jesus, de certeza, que a infância é um momento único na vida de um ser humano no qual são admitidos todos os sonhos sem se querer saber se eles vão ou não concretizar-se. Quando crianças, simplesmente alimentamos a vida de fé, vemos tudo como possível, sem precisarmos de explicações ou aprofundadas reflexões de como é que isso vai acontecer. Desconfiança é uma palavra que não cabe no limitado léxico infantil. Na infância, as palavras têm o valor que aparentam ter, desnudadas de sofismas, duplos sentidos ou diferentes significações ao gosto de quem as usa. Os gestos são o que são e valem pelo que trazem. Temos a capacidade de aprender com eles . As pequenas desilusões de uma criança lavam-se com algumas lágrimas ocasionais que cristalizam apenas na face e não na alma . Quando crianças, só olhamos para a frente, nunca para trás. É por isso que a infância, enquanto tal, não tem passado, apenas presente ou futuro. Em criança, criamos tudo de novo, todos os dias, e cada dia é um novo dia e não a continuação do anterior. Na infância tudo se faz de novo, e tudo é diferente do que foi. Somos únicos, somos vencedores, somos heróis, senhores do bairro, da rua, da aldeia, salta-pocinhas com avidez de viver a efemeridade de cada momento o mais intensamente possível. Desafiamos sorrisos e conquistamos ternuras no olhar de cada adulto . Nesse instante da vida, na infância, estamos por construir e temos ainda uma vida para usar. A mácula é um terreno que nos impõem corações sem infância.
*** Foi por isso que saltou à minha mente e ao meu coração a frase do meu Senhor, que me ama desde sempre. Para Ele quero ser uma criança de olhar guloso repousado na certeza das bençãos do Pai. Neste Dia da Criança, que cada um de nós tenha a capacidade de o voltar a ser, na aproximação ao nosso Pai e na vivência da fé, usando a vida de que ainda dispomos aqui para a revisitação dessa pueril felicidade infantil.
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Jacinto Lourenço