A identidade da arte está na criação, assim como todos os valores humanos. Deus fez o ser humano criativo e concedeu-lhe a capacidade de ver, conhecer, conceber e reinterpretar com criatividade. Como os demais valores humanos, o processo criativo também foi afectado pela queda. A arte produzida ficou atrelada às funções do sistema. Nos impérios Romano e Napoleónico a arte serviu o poder; na Idade Média e no Renascimento, serviu a religião com o apelo pela captação de fiéis que sustentavam a posição ociosa do clero; no modernismo, afirmou o pensamento iluminista do cepticismo, se transformando numa arte rasa e niilista. Não ousaremos negar que os valores da arte enquanto técnica são belos e refinados; em todos os períodos da história podemos contemplar obras admiráveis. No entanto, a arte em quase todo o tempo estava -- e está -- presa a funções. Somente na Reforma Protestante ela se faz livre. No século 16, os artistas que se convertiam ao protestantismo questionavam a posição da Igreja em relação às artes e passavam a buscar outros caminhos. Se aperfeiçoavam na pintura de retratos, naturezas mortas, naturalismo; pintavam cenas quotidianas como aldeões, trabalhadores do campo, casamentos etc. Até quando representavam episódios da Bíblia faziam-no com sinceridade ao representar os personagens, a vestimenta e os lugares; a arte era despretensiosa e não visava anunciar nenhum tipo de poder, nem mesmo o do próprio artista. Os artistas da Holanda protestante foram os precursores dos novos caminhos da arte para o resto da Europa e se tornaram os grandes mestres inovadores da pintura nos séculos 16 e 17. Entre eles estão Rembrandt, Peter Bruegel, Vermeer e Frans Hals. Segundo Hans Rookmaaker, académico das artes, protestante e fundador do L’Abri1 (Holanda, 1971), “A arte não precisa ser justificada e sim apreciada pela experiência estética que é enriquecedora da vida. A arte foi criada por Deus e tem sua dignidade própria. Não é a função que a faz ser válida; a arte é uma modalidade da vida criada por Deus e tem a função de trazer beleza e enriquecer a vida e não de ser reduzida a funções sistemáticas”. A arte cristã deve refletir a identidade criacional. Deve haver dimensão sensitiva, unidade na diversidade, fenómeno de estilo e até dimensões éticas. Até a representação do “feio” pode ter sua complexidade, porque ela faz parte da dimensão da vida e tem um sentido dentro da distorção da criação. Um exemplo são as obras do pintor Hieronymus Bosch (século 15), que retratava cenas de pecado e tentação, recorrendo à utilização de figuras simbólicas complexas, originais, imaginativas e caricaturais, muitas das quais eram obscuras, mesmo em seu tempo. A realidade da vida e do contexto cultural do artista está inserida na obra; não é obrigatório o artista cristão representar cenas bíblicas, mas ele deve voltar os olhos para a criação e perceber que tudo o que é belo em sua complexidade, sublime e digno de valores faz parte do plano de Deus para a humanidade.
1.) O L’Abri (o abrigo, em francês) é uma organização cristã fundada por Francis Schaeffer e sua esposa, Edith, na Suíça, em 1955. Eles abriram sua casa como um ministério para os viajantes curiosos e como um fórum para discutir as crenças filosóficas e religiosas.
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Por Rafaela Coelho *** Via Revista Ultimato