terça-feira, 25 de maio de 2010

A DOAÇÃO

[ Escrita Criativa ]
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Tem os olhos grandes, como dois vegetais. Miguel Pacheco nunca teve uma palavra mais áspera para os seus olhos. E nunca usou óculos. -Um dia destes, os meus olhos andarão a passear numa rua da Guarda , alguém olhará para eles e há-de pensar que os reconheceu - costuma dizer isto aos poucos amigos que ainda mantém, agora que está doente e doou os seus olhos esverdeados. - Que já os viu noutro rosto - conclui, após perscrutar o abalo que as suas palavras fazem. Os mais sensíveis que o escutam, não acham muita graça. Mas a verdade é que é assim mesmo. Tratou de tudo, com seu médico de oncologia e com o seu advogado. As costas cada dia lhe doem mais e, para piorar as coisas, no abdómen começa também a sentir um estilete que lhe produz uma dor finíssima. Mas os olhos têm a aparência de duas esmeraldas, é certo que parecem às vezes estar no fundo de um veio de água turva. Tinha dias. Os olhos estão bons e o cansaço, esse, está apenas no cérebro por tudo quanto puderam ver, ao longo dos seus cinquenta e alguns anos de idade. De manhã, quando acorda, o seu olhar tem o aspecto de ter chegado de uma longa jornada, às vezes levanta-se de noite, interrompendo qualquer cenário onírico, e tem mesmo de o fazer para escrever umas palavras que vêm a ser um poema, mais tarde, ou um pensamento a que agrega ideias. Mas no geral, sobretudo depois de lavar o rosto com água sempre fria e de massajar o lugar à volta dos olhos, inicia o dia com estes sempre atentos ao que possa capturar. Não é jovem já, mas os seus olhos podem dar grandes passeios. - Os meus olhos são como os belgas nos cafés, estão lá para serem observados e observarem - costuma aplicar este pensamento que ouviu ou leu. De facto, assim é, estão sempre em estado de observância, de um lado para o outro, não deixam passar nada sem um subtil regard - incorre com frequência neste galicismo. Seja um simples pardal que se atira da varanda, uma expressão adulta de uma criança, seja mesmo um silêncio quebrado de um modo inusitado, um carro de uma cor ensurdecedora, ou uma bela mulher a chamar a atenção com os saltos agudos dos sapatos, que batem na calçada com o ruído de pedras de gelo a cairem num copo Atlantis. Amiúde, Miguel Pacheco questiona-se onde tem a memória, se não a terá nos olhos. Uma coisa tem neles, a nostalgia, - um relance de tristeza- dizem algumas pessoas da família. Vê-se ao espelho e às vezes pensa nisso, procura na íris os passados ou, como em duas bolas de cristal, os futuros. A única coisa que sabe, - Os meus olhos vão sobreviver-me - , costuma dizer quando está mais descontraído, é que os seus olhos vão ficar por aqui mais algum tempo. Quando levam a conversa para o desanuviamento, dizem a Miguel que os seus olhos são como os templos Maias, mantêm-se no topo mais do que os próprios maias, que já desapareceram há muito. Pacheco, contudo, leva a lei da doação de órgãos muito a sério. Os seus olhos, como ele próprio, não estão inscritos no Registo Nacional dos Não Dadores. Sente um visível orgulho nisso e no que vai fazer com eles. São uns olhos que andaram já por muitos lugares, estiveram sentados, sempre abertos, em aviões, comboios, um dia, na infância, fizeram uma viagem de barco e ainda sente neles a linha inalcansável do horizonte, - Este nascer do sol sobre a ponte que atravessa o Guadiana, a caminho de Sevilha, é quase a primeira manhã do mundo -, disse um dia para a sua família, quando seguiam para Torremolinos, ou - Esse vento nocturno iluminado que sentimos no terraço do Empire State vê-se perfeitamente, tal a sua densidade - repete sempre que se lembra de Nova Iorque. São, de facto, uns olhos que têm história, já viram filhos crescer, cabelos loiros tornarem-se mais escuros, os netos e as netas deixarem de gatinhar, ou os pais começarem a arrastar os passos, olharam com tédio para fotografias, tentaram perceber a utilidade de certas mortes, silenciaram-se diante do infinito, como um pequeníssimo caixão prestes a entrar num forno crematório, ou abriram-se como um grito silencioso. No dia em que assinou os papéis para a doação, Miguel Pacheco continuou a tentar ver o mundo através dos seus olhos, como se eles fossem independentes do corpo.
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João Tomaz Parreira
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- colaborador -