A questão dos crucifixos nas escolas não se pode resumir a uma luta entre católicos e ateus, ou entre religiosidade e laicismo. Há mais vida para lá dessas opções.
A sociedade portuguesa é tendencialmente heterogénea, em termos religiosos. Temos o peso histórico do catolicismo-romano, algum ateísmo militante, um agnosticismo que dá sempre jeito, em especial a políticos de centro-esquerda, mas também temos protestantes, judeus, evangélicos, islâmicos, ortodoxos, grupos religiosos brasileiros mais recentes, de tipo neopentecostal, cultos afro, mórmons, hindus, budistas e outros.
Cada vez mais se verá uma dispersão e pulverização na sociedade portuguesa, em matéria de fé, a qual decorre, em grande parte, da globalização e dos fluxos migratórios, em particular africanos, brasileiros e do leste da Europa. Apesar de tudo, as igrejas protestantes começaram a implantar-se por cá ainda no século dezanove, impossibilitadas de o fazer, durante os três séculos anteriores, devido à prática da Inquisição.
Recentemente os jornais deram conta duma petição que estará a ser preparada «A favor da presença de crucifixos nas salas de aula das escolas públicas», com vista à sua discussão no Parlamento.
O Estado recusa-se a cumprir a lei e a Constituição, pois muitas escolas ainda exibem crucifixos nas paredes das salas de aulas, ignorando a lei que diz que não o podem fazer. Segundo parece, a política do Ministério da Educação é só mandar retirar se houver um pedido dos professores, alunos ou pais. Ou seja, cumpra-se a lei… mas só quando alguém se queixar, o que é indigno e ridículo, além de antidemocrático.
A ideia dos subscritores é que Portugal se aproxime do conjunto de dez países tradicionalmente católicos como Malta e São Marino, ou ortodoxos como a Grécia e a Rússia, que se uniram ao governo de Berlusconi para protestar contra a lei que proíbe os crucifixos nas salas de aula das escolas públicas italianas, anteriormente aprovada. Mas isto não é inocente, porque a decisão definitiva na Itália, sendo favorável, poderá influenciar nesse sentido a revisão da jurisprudência de países membros do Conselho da Europa sobre o uso de símbolos religiosos nas escolas.
Apesar de se dizer que a ideia é permitir que os símbolos religiosos de outras confissões possam também estar lado a lado com o crucifixo (que confusão!), sabemos bem que resultado daria tal coisa. Em especial num país onde nem sequer há a tradição de manter capelas mortuárias interconfessionais, espaços públicos onde pessoas de todas as confissões religiosas se sintam em casa para proceder às exéquias dos seus fiéis.
As escolas públicas não podem (segundo a Constituição) nem devem (de acordo com a tolerância e o respeito pelo Outro) exibir quaisquer símbolos religiosos nas salas de aula nem nos espaços comuns. Mas o mesmo se poderia dizer dos hospitais públicos, muito embora aqui faça todo o sentido a existência de uma capela interconfessional, onde ministros de culto de qualquer religião reconhecida possam realizar serviços religiosos para os doentes internados, sempre que isso se justificar.
É preciso esclarecer quem não sabe que só os católicos se identificam com o crucifixo. Nem os ortodoxos, os protestantes ou os evangélicos (constituindo estes últimos o número mais significativo em Portugal, depois dos católicos), para não falar de religiões não cristãs, se identificam com tal símbolo.
Estamos, portanto, muito longe da prática de uma efectiva liberdade religiosa em Portugal, continuando a assistir a uma luta surda entre católicos e ateus, como se nada mais existisse.
É mais um sinal do nosso subdesenvolvimento.
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Fonte: Brissos Lino, Setúbal na Rede, 20/7/10***Via A Ovelha Perdida