quinta-feira, 29 de julho de 2010

Ser Herói no Alentejo...

Acaba de ser lançado o livro que inspirou José Saramago a escrever a obra «Levantado do Chão». Trata-se de um livro escrito por um camponês, analfabeto, mas que aprendeu a escrever para contar a vida enquanto trabalhador rural e relatar o sofrimento no campo alentejano. O manuscrito de João Domingos Serra foi parar às mãos de José Saramago quando este foi para Lavre, Montemor-o-Novo com a intenção de escrever um romance. O então jornalista e escritor ainda pouco conhecido leu o manuscrito e reconheceu-lhe valor não literário mas de obra de uma época de dor - o Alentejo no tempo do Estado Novo. Rita Pais, durante vários anos revisora dos livros de Saramago, pegou nas páginas "Uma família no Alentejo", passou-o a limpo, corrigiu-o, pesquisou e apresenta agora o resultado numa conversa com o jornalista Mário Galego.
Fonte : Antena 1
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João Domingos Serra, era meu tio-avô. Com ele, e uma boa parte da sua família, convivi durante alguns anos mercê do facto de ser João Serra irmão da minha avó materna, Gertrudes Serra, que foi quem me criou a partir dos meus seis anos de idade. Não conheço, porque não os vivi, todos os factos narrados neste livro agora editado pela Fundação José Saramago. Conheço alguns, bem como conheço todas as pessoas envolvidas na narrativa pois perto delas vivi uma boa parte da minha infância e adolescência.
A vida sacrificada deste meu tio-avô foi a vida de todos os assalariados alentejanos e da generalidade das suas famílias no período a que se reporta a narrativa do livro agora publicado. Só quem não conheceu o Alentejo pode não sentir respeito pelos alentejanos e pela sua luta a favor de melhores condições de vida num tempo em que isso podia significar, e significou muitas vezes, ser preso, espancado e até levado à beira da morte, à qual muitos sucumbiram. Só quem não conheceu o Alentejo, até início da década de 70 do século XX, pode ter a ousadia de desconfiar de que, tudo aquilo que se conta e se sabe acerca dos alentejanos, possa não ser verdade. Talvez a maioria de nós ignore, ou queira ignorar propositadamente, que até finais da década de 60 do mesmo século XX, os trabalhadores alentejanos ainda tinham uma jornada diária normal de trabalho que se prolongava de sol a sol, paga como um dia normal de trabalho, facto que implicava, no período do verão, trabalhar consecutivamente 14 ou 15 horas com breve intervalo no período do pino do sol. A sua luta expontânea pela jornada de oito horas diárias de trabalho foi heróica, num tempo em que era proibido haver heróis no alentejo porque a GNR e a PIDE não deixavam. No ambiente político do estado novo em que os grandes latifundiários e proprietários de terras no Alentejo eram intocáveis e defendidos com unhas e dentes pelo regime, forçar o governo de então a aceitar o objectivo da jornada de oito horas de trabalho foi realmente heróico. Pelo meio, muitos foram os trabalhadores selvaticamente espancados, arrancados às suas famílias e levados para as prisões acusados de serem comunistas e torturados com a maior desumanidade quando a maior parte deles nem sabiam o que era isso, o comunismo.
Por tudo isto, as memórias de João Domingos Serra, deveriam fazer parte do estudo obrigatório do que foi o Alentejo nas décadas que antecederam o 25 de Abril de 1974 em Portugal. É por isso que faz também todo o sentido esta publicação do Livro em referência. Só peca por ter sido tardia. Sei também que esta publicação se fica a dever a uma grande esforço da parte da família directa do meu tio-avô, nomeadamente de alguns dos seus filhos e netos. Sem isso era bem possível que não se chegasse a saber que a história por detrás de "Levantado do Chão" de José Saramago, é a história de vida de João Domingos Serra e da sua família.
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Jacinto Lourenço
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*** Entrevista a Rita Pais na Antena 1 - Ouvir: