Veio até junto de mim, meio receoso, meio inquieto, meio comprometido, meio esperançado de que tudo afinal acabasse bem para ele depois de eu o ter apanhado com fósforos na mão a tentar incendiar meia dúzia de papéis velhos, trazidos pelo vento e amontoados junto do relvado que circunda a igreja por detrás da minha casa. Chamei-o, disse-lhe que nada receasse (afinal só queria retirar-lhe os fósforos e passar-lhe um raspanete). Teria 9 ou 10 anos de idade, tal como os seus outros dois companheiros de brincadeira. Foi o que fiz, pelo meio de algumas perguntas sobre o seu nome e onde morava. Percebeu rapidamente que o iria "entregar" e preferiu não me dizer onde era a sua casa, embora me tivesse afiançado que era da província e que estava de férias em casa dos avós. Com o meu ar de adulto, sabedor e experiente, que acha que pode ensinar tudo a um miúdo de 10 anos, expliquei-lhe das muitas razões pelas quais não se deve brincar com fósforos, especialmente num tempo em que, diferentemente do meu tempo de menino de 10 anos, em que tinha, na maior parte das vezes, que construir os meus próprios brinquedos, ele dispunha, na actualidade, de mil e um objectos para poder ocupar o seu tempo de criança ladina sem recorrer a "aventuras" com fósforos que podem tornar-se um grande problema para muita gente sem tempo para resolver problemas.
O seu olhar quase fulminou a minha argumentação. Disparou as suas certezas aproveitando ter na mira um dos alvos da sua incontida revolta, um dos adultos "responsáveis" pela triste sina que lhe destinaram, esta de ser criança de 10 anos num tempo em que nem sequer lhe deixavam espaço para exercitar a sua infância. Que sim, que eu é que tinha tido sorte por ter tido a oportunidade de fabricar os meus próprios brinquedos. Que ele nem desse privilégio se podia abeirar e que estava cansado de uma infância formatada e pensada por quem não era criança, como ele; uma infância cheia de adultos que em longínquas paragens lhe fabricavam sonhos que não tinha sonhado. Sim, era por isso que tinha que brincar com coisas proibidas, coisas que chateassem os adultos, que fizessem dele o "herói" do momento, tal como eu que, nas minhas brincadeiras de infância, qual xerife cavalgando o meu cavalo de pau, feito com as minha mãos de menino de 10 anos, perseguia, entre canaviais e trigais verdes acima da cabeça, todos os "bandidos" de turno foragidos à justiça.
Tanta coisa que afinal eu aprendi, em escassos minutos, com um miúdo de 10 anos a quem nem sequer é dado espaço para poder fabricar os seus próprios brinquedos.
Fica muito por dizer do que resulta das entrelinhas desta conversa de alguns minutos com uma criança de dez anos; mas o mais importante ficou entendido, pelo meio da sua arguentação explícita e viva: a sociedade e o modus-vivendi que estamos a construir, não convém a crianças que precisam crescer e desenvolver-se harmoniosa e equilibradamente. O mundo que lhes estamos a deixar é, de vários pontos de vista, muito mais pobre que o que nos coube em herança. E mesmo que os pais e família tenham agora maior poder aquisitivo, isso não faz deles melhores adultos nem dos seus filhos crianças mais felizes; bem pelo contrário, como facilmente se comprova.
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Jacinto Lourenço