terça-feira, 31 de março de 2009

O ícone da liberdade

Meu pai sonhava com a possibilidade de um dia emigrar para o Canadá. Preso político, imaginava sumir um dia, simplesmente evaporar, em alguma cidade gelada para nunca mais mencionarem o seu nome.

Papai também brincava com as batinas eclesiásticas. Invejava os padres. “De batina”, dizia, “as partes íntimas respiram sem aperto”. Nos anos odiosos da ditadura militar de 1964, agudizou-se a obsessão pela liberdade. Meu pai acreditava que esta liberdade devia começar pela genitália, que precisava “de espaço para se mexer sem sufoco”.

Cresci com tal urgência. Na adolescência, eu queria “ir embora” do Ceará. Meu sete de setembro aconteceria na pista do aeroporto. Sonhava uma dia gritar “independência ou morte” a mais de dez mil metros de altitude. Eu queria ir além do apertado perímetro de Fortaleza.

Enquanto não conseguia fugir, matriculei-me nos cursos de inglês, alemão e esperanto. Tudo no mesmo dia. Desesperado, batia na porta dos outros idiomas, tentando conhecer culturas que me recebessem como exilado. Acreditei que estudando linguas, poderia me insurgir contra o mundinho que ocupei. Quando me despedi da igreja católica, almejava a liberdade que os protestantes diziam possuir. Eles pregavam autonomia na leitura da Escritura.

Porque não me conformava com o ar modorrento do dia a dia, pratiquei esporte. Colecionei selos. Eu queria ser muita coisa ao mesmo tempo. Chego a dizer que mais de um, “fomos muitos”. Todos almejando emigrar, todos lutando por uma liberdade que ficava no finzinho do verde mar de minha terra natal.

O livre nasce do não-contentamento. Sua coceira comicha, mas não sabe dizer onde. Espécie de estraga-prazer na festa da complacência, encarna a contradição que escraviza o rei e torna o vassalo dono do seu nariz.

O livre diz que o corpo padece com a opressão, mas o coração pertence a outra pátria. Mesmo sem nunca alcançar o paraíso, dá as costas ao carrossel da sobrevivência. Desdenha os cenhos franzidos e diz não temer a ameaça do inferno.

O livre não espera por ônibus, não procura trilha, não segue moda, mas pedala, abre picada, cria tendências. Sua nostalgia é intangível. Seu passado, combustível da esperança.

Papai não vestiu batina e jamais visitou o Canadá, mas nunca permitiu que os grilhões da conivência, o peso morto do peleguismo e o cinismo do materialismo prendessem seu coração.

Hoje amanheci com saudade dele, meu ícone de liberdade.

Soli Deo Gloria

Ricardo Gondim