terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Memórias são Âncoras que nos Agarram em Terra

Lavre não me viu nascer, mas "pariu-me" a infância e a adolescência. E isso deixou-me marcas indisfarçáveis que tempo nenhum pode apagar. Aí volto, com pouca frequência, a espraiar o olhar pelos campos onde os meus verdes anos saltitaram e a pisar o chão dos lugares que me viram crescer, muito mais apertados hoje do que na minha infância, talvez porque o meu ponto de observação se deslocou. Só aí sinto o cheiro da terra-madre. É aí que estão as minhas raízes. Foi em Lavre, numa velha "carrinha" da Gulbenkian, que despertei para os livros, sendo por eles levado em aventuras e viagens inenarráveis a que só a imaginação para onde a leitura me conduzia, permitia. De quinze em quinze dias lá estava eu no largo do coreto à espera do serviço itinerante; era o primeiro a chegar, para ser o primeiro, da diminuta "clientela", a entrar e escolher à vontade os seis livros que me autorizavam. Quando viajo para Lavre, hoje, faço-o quase incógnito. Não porque seja escolha pessoal, mas porque as memórias visuais das pessoas contemporâneas da minha vivência na vila ficaram descoloridas, gastas, ou simplesmente apagadas pelo tempo que, indubitavelmente, se encarrega de não esperar por nós na voragem a que correm dias, semanas, meses, anos. +
Quem revisita as memórias de infância, "espreita pelo buraco da fechadura” os verdes anos e a nostalgia que carregam consigo. Quase conseguimos “cheirar” os odores desses momentos mais recuados em que desfilávamos livremente pelos campos, colhendo aqui e ali uma ou outra peça de fruta em pequenos mas tentadores pomares que nos desafiavam à aventura do gesto fugaz e comprometido.
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São curiosas, as nossas memórias; mais parecem âncoras que nos agarram em terra . Como navio encalhado, insistimos em ficar mentalmente no mesmo lugar onde fomos felizes, mesmo se a corrente da vida foi forte. Voltamos atrás no tempo e visitamos, violados, na estética sonhada, os lugares de uma pequena vila que regurgitava de gente ao sábado no final de tarde, e à noite. A camioneta das seis e as novidades que trazia de Coruche ou de Montemor. As encomendas, que ávidos disputávamos na expectativa de que entregues aos lojistas estes soltassem cinco ou dez tostões. O sr. João Peça, sim, era pródigo, chegando por vezes aos quinze tostões… Os "bébés" recém-nascidos da sra. Cacilhas, que me rendiam um cruzado por lhes proporcionar triste destino aliviando a dona da insensatez da sua gata, vadia sempre que lhe apetecia. Sim, pois, e o Augusto Roque com os sorteios da roda para as quartas de amêndoas ( saía muitas vezes ) por altura da páscoa, mais os casamentos em que nos agatanhávamos, no chão, em luta por algumas amêndoas que os padrinhos de casamento atiravam, para o chão poeirento, do alto das escadas da matriz, ou não atiravam, arriscando, caso disso, vaias de “casamento chocho que o padrinho é mocho”.
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A escola primária, o professor Raul, que casou com a "menina do correio", e que fez de mim benfiquista. Sempre que havia eliminatórias europeias lá íamos nós na forma, muito bem comportados, a caminho da "televisão do padre", verdadeiro serviço público de entretenimento, nesta Lavre, em dia de encantos e desencantos conforme o resultado. A professora Helena, de triste memória para mim, pela brutalidade das suas reguadas e ponteiradas por coisas de somenos e a que eu me "candidatava" com regularidade. Os amigos e amigas de infância, a quem perdi o rasto e de que hoje só reconheço o nome : Zé Broa, Manuel Tielas, Palminhas, o Joaquim Lascas, em cuja casa, no armazém da farinha, nos enfarinhámos tantas vezes em loucos jogos e brincadeiras, para não falar do seu enorme quintal ( pelo menos era o que me parecia na altura ) ou dos jogos de bola que aí fazíamos com as bexigas dos porcos que o seu pai matava e que entretanto marchavam em chouriços para o talho. A Badina e a sua irmã Filomena; Manuel José e tantos outros cujos nomes agora não me ocorrem. O forno "semi-comunitário" onde a minha avó Gertrudes cozia alguidares de pão que haviam de durar duas semanas para toda a família, e que era sempre fresco, e eu a brincar com bonecos de massa. Mas igualmente o cheiro a pão cozido da “padaria dos Galegos"…
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Vivências que não esqueço, que me marcaram para sempre, indelevelmente.
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Lavre dos meus encantos de infância feliz.
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Saramago, que uniu e dividiu , havia de por lá aparecer anos mais tarde, no refluxo do PREC, no pós-revolução de Abril. Lavre, onde se "refugiou" em reclusão política e recolecção de vidas, não terá feito dele escritor , mas deu-lhe um passaporte para a fama . Deve-o, em grande parte, ao meu tio-avô João Serra, dito João Mau-Tempo em "Levantado do Chão". Pena que não lhe tivesse feito essa justiça em vida; não foi por lhe faltarem oportunidades...
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Jacinto Lourenço