sábado, 19 de fevereiro de 2011

Uma Fogueira de Vaidades para queimar Maria Rattazzi

+
+
De todos os livros e relatos que se escreveram sobre o nosso país, o texto de Maria Rattazzi - Portugal de Relance -é o principal candidato ao estatuto de mais polémico. "Prémio" a que não será alheio o tom, a displicência, o à-vontade e a irreverência com que a princesa tratou um tema tão caro aos portugueses, a sua própria pátria. Não é que o volume fosse apenas pródigo em falsidades - como o próprio título original parecia indiciar, um vol d'oiseau sobre Portugal - mas o que lá estava impresso provocou uma verdadeira fogueira de vaidades, com repercussão raramente vista no nosso meio cultural.
+
A reacção negativa com que foi recebida a prosa da visitante ultrapassou em muito a habitual hospitalidade que é costume verificar-se no confronto com os regulares contributos dos estrangeiros que nos visitam. Neste caso, não existiram opiniões favoráveis, nem defensores para uma dama cujo comportamento era tido como bem leviano. Se a senhora não foi vítima de uma cena de pancadaria só se deve a um mínimo de pudor por parte dos homens (e até mulheres!) de oitocentos que tiveram vontade de exercer uma reparação pouco intelectual .
+
Contra a autora levantaram-se tantos protestos e antipatias que ela nem teve coragem de dedicar o trabalho a alguém. "A quem hei-de dedicá-lo?", perguntava no prefácio... E, respondia "Oferecê-lo, como homenagem afectuosa, a qualquer dos meus amigos, seria falta de generosidade, equivaleria a condenar um inocente aos transes afrontosos de uma vendetta implacável". Por isso, decide oferecer "aos meus inimigos" a "humilde dedicatória". Inimigos não lhe faltariam após a primeira impressão em português - e uma segunda foi exigida pouco tempo depois. Edições que se sucederam à original publicada em francês, da casa editora de A. Degorcet-Cadeau sob o título atrás referido e com um subtítulo Portugais et Portugaises, numa capa onde se lia como autora duas palavras Princesa Rattazzi.
+
As suas visitas a Portugal iniciaram-se em 1876. Três anos depois regressou, tendo continuado a "ver" e a "tomar notas" sobre o nosso país, convivido com muitas pessoas da alta sociedade, trocado opiniões com alguns representantes do panorama intelectual português e redigindo um volume em cujas observações nada receava comentar e, em algum momento, poupava os sentimentos dos visados.
+
Essa coragem opinativa torna-se mesmo o aspecto mais interesante deste livro. Rattazzi tinha um espírito arguto, observador e crítico e, ao serem-lhe abertas todas as portas dos salões lusos, possuía um abundante manancial de informações para perorar e a exigir respostas inflamadas. No correr do seu texto não faltavam alfinetadas a uma sociedade parola e própria de uma periferia da Europa - que já nem podia viver das glórias das descobertas de 1500. Não era mentira quando afirmava que "o êxito do meu livro estava dependente da fidelidade do desenho típico do país que me propus descrever, sem o que não chegaria a pintar senão um quadro de um azul monótono e deslavado, com um céu irisado, recamado de lantejoulas", nem era falso que o resultado da sua "reportagem" fora antecedido de muitos comportamentos de portugueses cordatos que trocaram a sua pele de cordeiro pela de lobo ao ler tal Vol d'Oiseau, como o irado Ramalho Ortigão, que deixara na princesa "recordação agradável sugerida pela encantadora carta, deliciosamente escrita, que me endereçou na minha primeira visita".
+
Retrato curioso e actual, de onde nem as folhas deste Diário de Notícias de então saem perfumadas...
+
+
+
João Céu e Silva in Diário de Notícias de 05 de Fevereiro de 2005